Anjo da Guarda

Escrito por Fidélia Pissarra

“Caso para pensar: por este andar, tarda nada, alguém exigirá que quem deixou de viver na parte velha da cidade a volte a habitar e que quem foi estudar, trabalhar, ou simplesmente passear, para outras bandas regresse. “

No tempo em que bastava nascer-se para ter direito a um anjo da guarda pendurado no berço, também me calhou um. De metal, preso a um círculo em madrepérola, o meu anjo da guarda, em vez de me guardar, ameaçava espetar-se-me na testa. O que obrigou logo a que o retirassem dali. Não fora por isso, teria até recordação mais terna do que a com que fiquei do adereço que, anos mais tarde, encontrei numa daquelas gavetas cheias de coisas completamente inúteis, mas que ninguém se atreve a deitar fora. Assim, nem ternura, nem qualquer significado, além do de descobrir que aquilo poderia, muito bem, ser coisa de ir a guardar com o menino Jesus do presépio, mal acabasse o Natal.
Compreenderão, portanto, toda a minha dificuldade em entender que haja quem se queira apropriar do bom do anjo. A ajudar à compreensão, bastará talvez lembrar de como ficaríamos se houvesse uma terra chamada Jesus e, aos de lá, lhes desse para fazer a mesma coisa. Aposto que depressa nos assustaríamos com a possibilidade de ficar sem Natal e sabe-se lá mais o quê. Sim, porque se aos de Jesus lhes desse para aí, haveria sempre a possibilidade de lhes dar para muito pior. Pelo sim, pelo não, mais vale deixarmos de declarar que o anjo é daqui antes que alguém se lembre de dizer que outro qualquer, que também nos dê jeito, é lá do sítio deles. Depois, convém também não esquecer a impossibilidade de descobrir o que é que o anjo acha disto tudo e do que pensará sobre o assunto toda a gente boa que é só daqui. Para além de que, com esta modernice de o querer daqui, até o anjo se poder sentir, muito legitimamente, refém e os daqui, que não são anjos, sentirem-se renegados. Ao anjo, poderá ser o peso dos pés que o não deixa voar do sítio, fazendo-o sentir-se prisioneiro, aos outros, serão os perpétuos desapegos de que, recorrentemente, se queixam, o que bem pode explicar esta nossa recente propensão para o saudosismo, revivalismo e outros “ismos” (só a ideia de os poder ter de escrever assusta) que nos tem assolado.
Não sei se já repararam, mas, de há uns anos a esta parte, que aqui parece não se sair das bênçãos, homenagens, procissões, evocações, recreações, inaugurações, memoriais e outras coisas que tais. Então, no dia da cidade isto tem sido um corrupio de figuras e figurões. Ele é o bispo, o polícia, o mestre-escola, as medalhas, os louvores e, como não poderia deixar de ser, até os pendores. O certo, certo é que, entre uma coisa e outra, o que por aqui não tem faltado é quem insista em nos persuadir a recuar no tempo e, porventura, no espaço. No tempo, através das praxes, já se vê. No espaço, através da significação das ditas. Caso para pensar: por este andar, tarda nada, alguém exigirá que quem deixou de viver na parte velha da cidade a volte a habitar e que quem foi estudar, trabalhar, ou simplesmente passear, para outras bandas regresse. O que bem pode levar-nos a poder concluir que, de acordo com a História, se calhar não será só a possibilidade de ter de escrever outros “ismos” que nos deve assustar, pois são pacovices como as recentemente ocorridas na velha Praça Velha, que promovem e, alegadamente, fundamentam tais exigências e as inerentes imposições.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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