Ser apenas apostila de “todos os sonhos do mundo”, no difundido verso do heterónimo pessoano, encantadoramente indefinido entre as brumas do Decadentismo e a vertigem futurista, mas sobretudo ter a consciência de não ser nada, de não querer “nunca ser nada”, eis o mote para se estar sempre de janela voltada ao mundo e fazer de todas as “Tabacarias” (proclamadas quer sob o vão austero e recolecto do granito ou no promontório límpido sobre o infinito) – o evangelho contemplativo que propicia a própria vida.
Entremeando a égide das ninfas mondeguinas e a das tágides, que o mesmo é dizer, entre a tal “deusa grega” e a “marquesa do século dezoito” de Álvaro de Campos, o velho cronista – sim velho, porque nisto de escrevinhar, a vetustez mede-se pelo tempo dedicado ao estilo, à composição frásica e até ao cultivo da própria caligrafia – forjado nas mais remotas práticas da lealdade ao canhenho, à anotação rasurada e reescrita, sente o mesmíssimo ímpeto interior. Porque o mundo existe e morre, dilata-se ou minora dentro de nós. A sua dimensão depende do modo como nos relacionamos com ele.
A contemplação acrítica do entorno, conjugada com uma práxis existencial esteada no apego constante aos aspectos mais enfadonhos e superficiais do quotidiano – para não dizer mesquinhos – remete necessariamente para uma visão limitadora da vida e assistimos, hoje, com lamentável e crescente constância, à pequenização dos horizontes, das mentalidades, dos lugares. Carvalho Rodrigues – meu preclaro amigo de muitas latitudes – é, hoje, com o hábito de Malta, sob o Otagon em Casal de Cinza, tão cosmopolita como quando veleja nas suas épicas regatas do Atlântico Sul e que tornam a Ribeira das Cabras maior que o Tejo (apud Caeiro). Esta capacidade de reinventar a vida, a serena decisão de quem serão os seus protagonistas e quais não o são; a distinção entre as paisagens e os lugares habitados, o redimensionar as escalas da geografia.
A mitologia grega não nos fornece, desafortunadamente, a divindade oposta à do Rei Midas. Mas ela, ingratamente omitida na Teogonia, existirá algures, porém, esquecida num templete cínzeo do jardim olimpiano: imagino-a precocemente anciã, corcovada, vulto desgrenhado, de lábios abusivamente ruborizados a falsear o sorriso, transformando todo o ouro que toca em pedras desvaliosas. Conversora da luz em treva, do alvor luminoso em carvoíço nocturno, a magnificência em pequenez, ela impera sobre um mundo de desencanto e sem lugar para os sonhos; um mundo traçado a compasso e esquadro, sem dissonâncias nem ousadias onde tudo é previsível em repetitivo mecanicismo.
Recordo o imenso universo contemplado naquele lavrador que domina o ciclo lunar e a orientação dos ventos, que dialoga com o Cosmos para bonançar as sementeiras, se rege por uma colectânea imensa de aforismos; o pastor que sabe o nome das estrelas, das constelações astronómicas, conhece as propriedades da flora medicinal, que distingue da aromática; reconhece os cantos das aves e domina um cancioneiro valiosíssimo… Lembro-me deste jornal que acontece há precisamente duas décadas na cidade altaneira mas que poderia existir em qualquer outro meridiano periodístico.
Compreende-se, assim, que muitas mentes esclarecidas tenham instalado a sua Corte na Aldeia – se se me permite a paráfrase de Rodrigues Lobo – como foi o caso do sábio que referimos atrás (a palavra caiu em desuso mais por escasseamento dos próprios sábios do que por debilidade terminológica). Parecem rarear no nosso tempo esses seres edificadores de mundividências (ou cosmovisões; no original alemão ‘Weltanschauung’), cultivadores da filosofia natural, da teoria do “todo” – oh! as aportações maravilhosas da Gestalt… – do conjunto de estruturações ontológicas do indivíduo emancipado, escorado na consciência co-existencial e nos valores éticos, emocionais e culturais à escala do orbe, facultando uma percepção dinâmica e pluridimensionada da vida comum.
Por outro lado, proliferam os habitantes dos microcosmos, que se esquecem de viver, distraídos do mundo que nunca conseguirão compreender, porque estão encurralados na sua própria avareza e pequenez. No afã de tudo quererem ter, mas sem que nada os haja conquistado, morrerão sem nunca terem vivido e fruído o universo maravilhoso que se oculta ante o olhar desatento ou até néscio. Jamais entenderão que viver é equilibrar determinismo e livre-arbítrio e não ser servos do primeiro desses conceitos…
Não querer “ser nada” é ter apenas fome e sede de infinito, e saciar-nos em Florbela. É ter a companhia de Hécuba, que não é esposa de Príamo, nem sequer troiana e nunca poderá ler Eurípedes: é apenas uma rafeirinha felina que recolhi da rua para a minha cosmovisão e cujo ventre acaricio enquanto lhe leio Sophia da janela de casa contemplando o mar…
* Escritor
** O autor escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO 1990