A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Faz-nos acreditar nos dias e na cintilação do rio quando o olhamos pela manhã. Uma limpidez vai escorrendo à medida que escutamos a música que pesquisou e nos oferece sem qualquer demanda. O deserto dissipa-se enquanto uma linha do tempo por ela inventada estimula o crescer da luz. Gostamos de olhar as suas fotografias de menina. Quase apetece dizer “estou viva” como se estar-se vivo fosse ainda mais além do que “escrever sol”. Aspiramos a sua imagem e desejamos ser tocados pelas estações. Subir às árvores. Andar à chuva. Misturar as mãos com a terra. Tingirmo-nos de tintas.

Por vezes traz-nos memórias do oriente. Rodeamo-nos então de cheiros e cores. Sentimos nos seus passos um certo rumor de alegria. Estendem-se depois as distâncias para regressarmos à fonte onde as pedras equilibram a água. Damos volta à voz e o que nos chega é a vibração, a matéria. Um colar molda-se ao pescoço e assoma a paz. Não existe ilusão. Tudo é realidade. A transparência de uma planta acabada de regar.

Ainda que quiséssemos ignorar seria impossível. Atravessamos montanhas iluminadas para sentirmos o ventilar da sua arte. Sustemos o céu nos azuis que coloca na mesa. O azul também é alimento. Do alto da sua brancura também nos olha de azul. Sente-se-lhe uma bondade onde se desdobra a tristeza. Com ela nos molda. Cobre-nos as nervuras e abre sulcos a mapear a vida. Afasta a sombra como se soprasse o pó de uma cómoda antiga. O vento regressa e toma a forma do seu sorriso. Quando se vê ao espelho é como se olhasse para nós.

Fala-nos das formas e do equilíbrio com que constrói uma casa com céu por cima. Chora as crianças e as mulheres na guerra. Tem a justiça na ponta dos dedos. E relembra a saudade de tudo e de todos. É por isso que arruma estantes. Sabe bem como os livros guardam memórias. No jardim ensaia a composição dos vasos. Tudo estará no lugar das emoções. Um segredo aberto a espelhar no peito. Ali pousamos o coração.

Na humildade oferece-nos os gestos. Às vezes trazem poemas agarrados. Como se nascessem da mesma raiz. Lemos-lhe o silêncio que tenta esconder, mas que em nós se faz ruído. Assim se ouvem os frutos a amadurar. Enche a cesta no jardim enquanto os seus gatos nos pedem afagos. E imergimos na sombra ou explodimos na cor. Cobrimo-nos na profundeza dos véus ferventes. Acendemos na pele as velas para que a luz não se extinga. E na sua quase invisibilidade vislumbramos o que há-de ser.

* A Fernanda Garrido

Sobre o autor

Maria Afonso

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