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Vivos odores

É em mim recorrente uma certa nostalgia saudosista em cada ano escolar que começa, normalmente despertada pelos anúncios das rádios locais que anunciam os artigos escolares já disponíveis, mochilas, canetas, lápis, borrachas, cadernos e livros…

Objetos mágicos!

Os artigos variaram ligeiramente, mas os odores memorizados escondem essa evolução e projetam-me numa viagem às papelarias da altura.

Da Fernando à Fernandes, passando pelo Casimiro ou pela Torre, o momento era mágico. Entretinha-me de olhos colados às pequenas montras esquecido daquele chuvisco que parecia de brincar mas molhava a sério.

Ansiava o dia em que a possibilidade económica ou a disponibilidade da minha atarefada mãe me permitiam cruzar as portas da papelaria e tocar as texturas do papel cavalinho ou das capas novas dos cadernos, admirar os lápis em grosas nas caixas, alinhados, intocados… quantas letras, palavras, erros e acertos lhes estariam destinados. Depois os olhos deliciavam-se com as folhas de papel de lustro. Tudo parecia ter sido feito para mim, tudo parecia estar à minha espera. Trabalhos ainda sem projeto, sonhos ainda sem nome, mas no meu cérebro de criança tudo aquilo me tinha utilidade, tudo aquilo era um mundo para explorar.

Saía de lá normalmente com a infinitésima parte daquele mundo mas com a sensação de o ter trazido todo. No saco aguardando tão impacientes como eu, iam normalmente, caneta azul e vermelha, um lápis entre três possíveis, o 1B, o 2HB e o 3H, normalmente era obrigado a escolher o 2HB porque “em princípio”, como diria o Sr. Felisberto, dava para tudo; uma afia, uma borracha de lápis/caneta, uma sebenta, dois cadernos pautados, um quadriculado, o livro de leitura, o de matemática, uma gramática, uma tabuada e depois de justificar o que tinha feito aos do ano passado, uma régua e um esquadro e um transferidor! Pouco mais que isto pois o dinheiro não sobrava e o essencial estava ali.

Depois o prazer seguinte. Quem não se sentiu um explorador, um cientista de 8 anos pronto para uma viagem de sonho ao abrir a sebenta ou o caderno e olhar aquela folha virgem e lisa, A primeira folha! Sob ela, dezenas de folhas juntinhas, certinhas, imaculadas, prontinhas a receber significantes símbolos, desenhos, palavras… sonhos!

Era preciso proteger aqueles “seres vivos” aquele papel com agradável odor, aquele mundo ainda intocado. Com a ajuda da minha mãe, sentados na mesa redonda, os pés quentes da braseira e a chuva lá fora numa qualquer tarde de domingo, munidos de um rolo de papel estampado, tesoura e fita-cola celebrávamos o ritual de “encapar” não apenas os livros mas também os cadernos!

Vincos direitos e meias esquadrias nos cantos e assim criava a minha coleção pessoal para o ano escolar. Não havia ainda as coleções de agora que alguém sonhou por nós e para nós retirando-nos a criatividade. Não havia Agatha Ruiz de la Prada e cadernos iguais aos lençóis e à caneca para o leite do pequeno-almoço. Não havia ursinhos Padington ou o Teddy Bear.

A nossa criação podia depois ser enfeitada com pueris bonequinhos de papel que as livrarias vendiam em tiras de mãos dadas assim com um look estado novo, uma espécie de figurinhas híbridas, de um berrante naif situado entre os rapazinhos da mocidade portuguesa e a pipi das meias altas. Era só separar-lhe as mãozinhas e colar… Uma delícia.

Depois era tudo acondicionado religiosamente na “mala”, o objeto que muitos anos mais tarde evoluiria para a mochila.

O que ficou desse tempo?

Além desta nostalgia que já não passará, ficou a memória dos cheiros das velhas papelarias, ficou a inabalável beleza da primeira folha da sebenta, ficou também a perfeição de caracteres alinhados com que escrevo manualmente na inauguração de um caderno… Ficou a infinita sensação de que há coisas em que sempre nos apetecerá voltar a ser meninos.

Ficou saudade!

Por: Júlio Salvador

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