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Vista de um ponto!

A habilidade de o Homem prolongar a vida, a morte, o conhecimento dos limites da medicina moderna, a incerteza sobre os limites da nossa responsabilidade e a obrigação de prestarmos todos os cuidados que estão ao nosso alcance, são elementos que, combinados com os conflitos pessoais e emocionais que ocorrem durante o processo do morrer, nos colocam perante um dos dilemas mais difíceis da vida humana.

A Associação Mundial de Medicina, em 1987, na Declaração de Madrid, considerou a Eutanásia como um procedimento eticamente inadequado.

Em termos da legislação portuguesa, não se faz qualquer referência à Eutanásia, mas na sequência da decisão do Parlamento holandês, em 1993, de permitir a sua prática em determinadas circunstâncias, o CNECV (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida) elaborou, em 1995, um Relatório e um Parecer que concluem que “não há argumento ético, social, moral, jurídico ou deontológico das profissões de saúde que justifique, em tese, vir a ser possível, por lei, a morte intencional de doente (ainda que não declarado ou assumido como tal) por qualquer pessoa, designadamente, por decisão médica ainda que a título de “a pedido” e/ou “compaixão”.

Na Holanda, durante a ocupação nazi, não houve conhecimento de que algum médico tenha aceitado as ordens de Hitler para não tratar idosos ou aqueles que não tinham condições de sobrevivência, ao contrário de outros países ocupados. Mas bastou pouco mais de uma geração para um crime de guerra se transformar num “acto de compaixão”.

A questão da Eutanásia é motivo de reflexão e de assunção de posições divergentes desde tempos remotos A morte recente de Eluana Englaro e o mediatismo que a envolveu trouxeram a Eutanásia para a primeira linha de debate político.

Já na antiga Grécia, pensadores como Platão, Sócrates e Epicuro defendiam o suicídio como forma de aliviar o sofrimento resultante de doença dolorosa. Por outro lado, Aristóteles, Pitágoras e Hipócrates defendiam o contrário.

Hipócrates, por muitos considerado o “Pai da Medicina”, no seu juramento disse: “Eu não darei qualquer droga fatal a uma pessoa, se me for solicitado, nem sugerirei o uso de qualquer uma deste tipo”. Por isso, a tradição hipocratiana tem levado a que os médicos e outros profissionais de saúde tenham como único objectivo a preservação e protecção da vida humana.

Aceitando-se a legalização da Eutanásia, os profissionais de saúde teriam também como fim causar a morte. Tal situação poderia ser potenciadora de um clima de desconfiança do paciente para com os profissionais de saúde.

A Eutanásia continua a desencadear os mais divergentes posicionamentos, em consequência, por um lado, da perspectiva sob a qual o problema seja analisado, por outro, tendo em conta os valores morais da sociedade onde o debate ocorre e ainda pela personalidade dos próprios intervenientes na discussão.

Entendo que devemos partir do pressuposto de que o direito à vida deriva directamente da dignidade da pessoa humana e de todos os seres humanos. Por muito doentes que estejam não deixam de ser seres humanos nem a sua vida deixa de merecer o mesmo respeito.

Esquecer este princípio, por uma questão de visão de uma maior ou menor valia da pessoa humana, leva a que se faça depender o direito à vida da qualidade desta, o que facilita a definição dessa fronteira na exacta medida do egoísmo e comodidade que imperem numa determinada sociedade.

Quando nos alegam, em defesa da Eutanásia, o “direito a morrer dignamente”, estão a procurar transmitir-nos a ideia de que todos aqueles que decidem suportar a dor e os impedimentos físicos morrem “indignamente” Assim, resistir à morte pode converter-se numa “indignidade” e esta coragem de resistir pode ser considerada como um “fardo para a sociedade”.

E que dizer do esforço daqueles que abnegadamente contribuem para que os resistentes tenham a melhor qualidade de vida possível, prestando-lhes assistência?

Por uma questão de princípio, a Eutanásia não deve ser legalizada. Se partirmos do pressuposto de que todas as campanhas a seu favor têm como premissa o carácter voluntário e consciente de quem a vai receber, quanto tempo levará para que se venha a praticar a Eutanásia para quem não está em condições de decidir por si mesmo: recém-nascidos, deficientes, agonizantes inconscientes, etc?

Logo que o princípio de respeito pela vida humana seja quebrado, todos os caminhos são possíveis. A permissão de leis que legalizem a Eutanásia pode desencadear fenómenos onde a pior consequência é a deterioração do conceito de dignidade da vida humana. Em termos legais, poderemos chegar ao ponto de estabelecer um legítimo paralelismo entre a legalização da Eutanásia e a instituição da pena de morte.

A maior parte das situações de aflição, dificuldade e sofrimento podem ser minimizados com solidariedade, afectividade e apoio, procurando soluções práticas para os problemas e dando sentido à vida. Se a isso juntarmos a evolução da medicina, neste caso particular, ao nível dos cuidados paliativos, estarão potencialmente reunidas as condições essenciais para que haja quem, cada vez mais, apesar de prostrado num leito ou atado a uma cadeira de rodas, resista ao suicídio e suporte as incomodidades. Até porque avaliar a qualidade de vida de um ser humano pelo estado de saúde físico e mental é relativo. Todos conhecemos pessoas que, sendo pouco saudáveis, espalham alegria à sua volta e outras que sendo saudáveis apenas desencadeiam angústia e infelicidade.

Temos que inverter, em termos de sociedade, o sentido de uma caminhada de subordinação do Homem a valores totalitários do ponto de vista material, associados exclusivamente à sua função produtiva. A não-aceitação da Eutanásia faz parte desse percurso.

Henrique Monteiro, Guarda

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