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Vindimário

1. Todos os Verões, as juventudes partidárias organizam a sua festa, com mais ou menos camping, mais ou menos convidados, mais ou menos doutrinação, mais ou menos feromonas, mais ou menos palavras de ordem. Sob a chancela da JS, nesta temporada teve lugar o Summer Camp 2015. À primeira vista, estas confraternizações ao ar livre, onde a hubris juvenil tem o lugar certo para se dulcificar, são de aplaudir, e a sua utilidade salta à vista. Ainda hoje recordo com satisfação os acampamentos em que participei quando era escuteiro. Só que, nas juventudes partidárias, estas iniciativas têm um objectivo completamente diferente. Vejamos. Será que nelas se promovem qualidades morais, a coragem, a destreza física, a lealdade e a transparência, o sacrifício, a perseverança, em suma, as virtus que na antiga Roma definiam um líder ou, no mínimo, funcionassem como requisitos básicos para a participação na vida pública? Desenganem-se caros amigos. Estes meetings só têm uma utilidade: assegurar que a geração seguinte vai replicar os vícios das precedentes; centrar a luta política em expedientes para singrar no aparelho partidário; formatar devidamente aqueles que se dá de barato serem os futuros dirigentes, só porque frequentaram a “escola” e não por lhe serem reconhecidas quaisquer qualidades cívicas e morais. Ou seja, estamos perante um tirocínio para uma carreira política reservada a quem irá reproduzir os erros e as “boas práticas” de quem os recruta. Numa espiral perversa, onde a aurea mediocritas do carreirismo político dissuade os cidadãos efectivamente vocacionados de intervirem na res publica. Neste caso particular, há que mencionar outro aspecto. Refiro-me à intervenção de Manuel Alegre, que tive ocasião de ver na TV. O tom geral do discurso e da postura era o “vamos a eles, cambada!”, “segurem-me senão dou cabo deles!”. Sendo “eles” a direita, essa coisa demoníaca. Claro que, enquanto expediente performativo, este tom comicieiro de forcado teve a sua utilidade nos idos de 70 e 80. Quando as cores eram bem definidas e as identidades se construíam em volta das filiações ideológicas abrasivas. Mas em 2015, mesmo dirigido a jovens devidamente doutrinados, é totalmente ineficaz. Duvido seriamente que tenha feito saltar alguma hormona combativa na assistência. O melhor serviço que se pode prestar aos jovens militantes é confrontá-los com a complexidade e as exigências do mundo moderno. Sem bombas de fumo, sem conceitos vazios, sem inimigos de cartão. Dando-lhes a entender que os seus melhores aliados são as virtudes intemporais. Ora, a certa altura, Alegre faz o apelo sacramental: “vamos derrotar a direita, o país precisa de nós, já chega, etc”. Mas chegado a justificar tamanha urgência, aos costumes nada disse. Ficou prisioneiro numa espécie de limbo discursivo. Uma hesitação fatal. Ou seja, nenhuma razão acompanhou o “vamos derrotá-los”. Porquê, porquê, caro Alegre? “Porque sim!”, “porque é a natureza das coisas, como na anedota do escorpião e da rã”, foi o que ele não disse, mas disse. Portanto, o orador não fez uma declaração política, mas uma profissão de fé. Que espelha a ansiedade e o vazio do inconsciente colectivo do PS. E isso é muito curto, muito pobre, para quem quer ganhar neste domingo.

2, O êxodo sírio despoletou nas almas urbanas e sempre atentas a novas causas uma explosão de filantropismo indómito, generosidade a toda a prova, hospitalidade sem limites, prodigalidade demencial. Há ofertas de “acolhimento” para todos os gostos: na garagem, na casa de férias, na arrecadação, na caravana, no pardieiro, etc. Uma solidariedade virtual disponibilizada pelos mesmos que, porventura, ignoram os carenciados da rua ou bairro onde vivem, olham para o lado quando um pedinte estende a mão, têm teorias sobre a situação “real” de certas famílias que recebem o RSI, etc. Vivemos numa época onde aquilo que devia ser natural – dar, acolher, servir, colocar-se no lugar dos outros – necessita da visibilidade como do pão para a boca. A espectacularidade de um gesto é tanto mais inócua quanto mais mediático é o tema e mais improvável a sua concretizarão prática. Ou seja, a boa vontade como forma de combater o ócio. Acontece que a verdadeira empatia com o sofrimento alheio não nasce de uma ideia, da interiorização de um dever, da condescendência mal disfarçada por uma vaidade com cintilações totalitárias. Os fanáticos sempre seduziram pela extrema generosidade que parecem demonstrar. Essa empatia nasce do reconhecimento mútuo de uma vitalidade essencial, irredutível, profundamente criativa. Sem olhar a quem e sem ninguém a olhar.

3. Dizer o que se pensa e ao que se vem, apesar de trazer alguns amargos de boca, é fundamental para sabermos quem temos ao lado, quem acredita em nós, qual o nosso lugar (que pode ser um não lugar) e o que estamos dispostos a conservar ou deixar cair. Deixamos de existir em círculos onde antes contávamos sempre? Somos objecto de segregação por donos de capelinhas provincianos e seus factotum deslumbrados? Paciência! O preço vale bem a pena…

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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