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Vindimário

Maria Teresa Horta recusou participar na cerimónia de entrega do prémio D. Dinis, uma vez que seria o primeiro ministro a fazê-lo. Para justificar o acto, a escritora declarou-se “uma mulher de esquerda, sempre fui, sempre lutei pela liberdade e pelos direitos dos trabalhadores. O primeiro-ministro está determinado a destruir tudo aquilo que conquistámos com o 25 de Abril e as grandes vítimas têm sido até agora os trabalhadores, os assalariados, a juventude… (…) O país está a entrar em níveis de pobreza quase idênticos aos das décadas de 1940 e 1950 e, na realidade, é ele e o seu Governo, os grandes mentores e executores de tudo isto”. Repare-se nesta prosa. Resume um discurso, uma atitude, um programa. Certamente os poemas que dedicou no PREC às vanguardas educadoras do povo e ao “povo” ele mesmo fossem mais inspirados. O mesmo povo que a escritora descobriu em êxtase, quando jovem, no quintal das traseiras. Leia-se, a propósito, este excerto de uma entrevista que deu ao suplemento “Ípsilon”, em Março deste ano: P: “Então não era uma menina “bem”, de linhagem aristocrática, numa Lisboa que fora capital de um Império mas que era, na altura, quase provinciana?” R:” Nunca fui uma menina “bem”, pelo contrário. Desde os cinco, seis anos, as amigas que eu escolhia, à revelia dos meus pais, eram rapariguinhas da minha idade ou um pouco mais velhas, que moravam em barracas de madeira junto de uma ribeira, nos fundos de uma pequena mata, para além de um muro baixo que às escondidas todos os dias saltávamos, na parte de trás do jardim da casa. A primeira aprendizagem do conhecimento da realidade, fi-la em sua companhia, pois elas sabiam da vida aquilo que eu nem sonhava, pelo avesso mesmo do meu imaginário de menina protegida, defendida, já a ser programada para o papel de passividade, de mulher-sombra, de mulher-sopro, de mulher-nada; aniquilamento exigido às mulheres das classes privilegiadas de um Portugal fascista, triste e medíocre.” Todavia, a sua badalada recusa é menos uma questão de forma do que de substancia. Evidentemente, qualquer um pode recusar um prémio: ou por não concordar com a sua razão de ser, ou por achar que não é merecido, que não é oportuno, que o júri não é idóneo, ou porque simplesmente não gosta de prémios. Há quem o faça com elegância, com estilo. E há quem o faça por isso lhe trazer publicidade gratuita. Não o querer receber porque não se gosta de quem o entrega, e assim aparecer nas bocas do mundo, isso sim, é de uma menoridade cívica notável. Repare-se que a escritora não recusou o prémio, mas tão somente estar presente na sua entrega. O cheque, como alguém lembrou, seguiu pelo correio.

2. Poeira, sacos, caixotes, chaves, embrulhos, molduras, livros, muitos. Alguns que esperaram por mim e outros por quem deixei de esperar (perdoa Cesariny). nestas alturas, cabe escolher o que integra um universo e é descartável noutro, o que vai e o que fica para trás. E depressa, pois não há tempo para hesitações. Seja como for, nas mudanças o que conta é o exercício de síntese, o desafio à capacidade de despojamento. O resto é cansaço.

3. Recentemente, convidaram-me no Facebook para um grupo chamado “Debate e cidadania na Guarda”. Antes de entrar, deixei um post para que me esclarecessem se, atendendo ao nome, o fórum funcionava em regime aberto e plural ou se exclusivo a adeptos de manifestações anti-troika e sucedâneos. O propósito era preventivo, uma vez que sou avesso a espírito de seita, esteja ele onde estiver. Logo alguém comentou: “Quem convidou este tipo?” A resposta foi sumamente elucidativa em relação à minha dúvida. Ou seja, o “debate” seria “numa nota só” e a cidadania fica sempre bem numa floreira. Pessoalmente, reconforta-me saber onde estão e quem cultiva hábitos democráticos de pluralismo e contraditório…

4. Portanto, há muitas linhas a separar muitas coisas, coisas a atravessar muitas linhas que parecem outra coisa, mas não são, porque essas linhas misturam-se com as coisas, escondem a sua densidade, parecem as mesmas, as linhas que envolvem as coisas, e as linhas que as atravessam, mas não são, já que as coisas perdem forma, peso, altura, com as linhas a sobreporem-se às coisas, às muitas coisas que são só uma, com as linhas. E só quando cada uma dessas coisas escapa às linhas que não são linhas e cair no pé saberemos então quanto valem.

Por: António Godinho

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