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Vida e morte de um caudilho exemplar

Theatrum mundi

Domingo, dez de Dezembro de dois mil e seis, hospital militar, Santiago do Chile. Acaba de falecer, aos 91 anos de idade, o ditador Augusto Pinochet Ugarte; causa provável da morte, o enfarto de miocárdio e edema pulmonar que o mantinham há dias na unidade de cuidados intensivos. Contudo, a crónica da sua morte estava a ser escrita desde que cumpriu 91 anos, a 25 de Novembro, quando foi lida, em seu nome, uma declaração em que o ditador não só assumia total responsabilidade pelas brutalidades cometidas durante os 17 anos no poder, como as justificava moralmente com recurso ao supremo interesse do estado chileno. Supremo desafio ao sentido de dignidade humana por parte do caudilho exemplar que achava o conceito de direitos humanos «honestíssimo», ainda que deturpado pelos comunista… O seu legado político: a tortura, os assassinatos selectivos e os largos milhares de desaparecidos cujo paradeiro continua desconhecido. Há uma semana, recebia a extrema-unção. Faleceu finalmente às catorze horas e quinze minutos deste segundo domingo de Dezembro, dia internacional dos direitos humanos.

Atrevo-me a dizer que neste domingo, com o desaparecimento do ditador chileno, há um certo século xx que termina também. Como um símbolo, só como um símbolo, desce o pano sobre a face mais cruel e sinistra do século xx latino-americano. Se este foi o século dos direitos humanos, da ascensão e da queda dos direitos humanos, entenda-se, o trajecto político de Augusto Pinochet Ugarte, caudilho exemplar, foi acumulando um conjunto complexo de factos e polémicas relativo ao assunto, transformando-se por fim em laboratório de um direito humanitário frágil mas emergente. Como tem sido repetidamente notado nos últimos anos, o Chile foi palco do outro 11 de Setembro, em 1973, o golpe militar que derrubou o governo democraticamente eleito de Salvador Allende e que, com a ajuda e a complacência da administração Nixon, perseguiu quem se lhe opôs e quem via como ameaça. A villa Grimaldi, antigo centro de detenção e tortura, é hoje o lugar de memória por excelência para aquele Chile que se recusa a esquecer esses 17 anos de violência. Durante esse tempo, a repressão dos seus opositores haveria de atingir a coordenação internacional. Nada menos que seis ditaduras do cone sul juntaram esforços para matar, torturar e fazer desaparecer prisioneiros políticos, naquilo que ficou conhecido por multinacional do terror. Nada disto obstou a que a baronesa Thatcher tivesse acabado por adoptar Pinochet como amigo pessoal, um acto determinado certamente pelo apoio que aquele lhe prestou durante a campanha das Malvinas.

Em 1988, o ditador pretendeu legitimar o seu poder através do voto popular. O voto popular não lhe fez o obséquio, mas Pinochet já garantira o cargo de chefe do exército, que deteve até 1998, e o de senador vitalício com as imunidades respectivas. Assumindo que qualquer ordem jurídica nacional é competente para julgar violações de direitos humanos onde quer que elas ocorram, o juiz Garzón emitiu nesse ano de 1998 uma ordem de busca e captura do ditador, aproveitando o facto de que este se deslocara a Londres para se submeter a uma intervenção cirúrgica. Durante mais de um ano, Pinochet esteve retido na capital britânica, preso da decisão judicial que o poderia ter extraditado para Espanha e lhe poderia ter conferido a honra de se transformar no primeiro ditador julgado por violação de direitos humanos e crimes contra a humanidade. Não foi isso que aconteceu e o juiz decidiu que o estado de saúde do ditador era razão mais que suficiente para permitir o seu regresso ao Chile. O agravamento desse estado viria a assegurar-lhe a imunidade vitalícia, mesmo quando surgiram provas de que, aos crimes conhecidos, havia que juntar outros, de natureza fiscal. E assim faleceu hoje, impune, Augusto Pinochet Ugarte, ditador do Chile e grande devoto de Nossa Senhora de Fátima (segundo informava há anos, cínica e despudoradamente, perante uma pequena plateia, um professor de cujo nome não quero lembrar-me). No teletexto da BBC leio que a baronesa Thatcher se apressou a exprimir, por intermédio de um porta-voz, a sua sentida consternação: «greatly saddened» …

Por: Marcos Farias Ferreira

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