O Fernando é motorista do serviço TIR. É casado e tem dois filhos pequenos. Está a “fazer a casa” e comprou carro recentemente, a prestações. Felizmente, ganha bem. Nos meses em que faz mais quilómetros, chega a trazer mais dois mil euros para casa. Pagam-lhe seis cêntimos por cada quilómetro percorrido, para além do ordenado base (um pouco mais de 500 euros), do chamado prémio TIR (um pouco mais de cem euros) e das horas extra fixas (um pouco mais de trezentos euros). Em contrapartida, esperam dele que trabalhe aos sábados, domingos e feriados e que não reclame os descansos compensatórios.
O arranjo do pagamento ao quilómetro sabe o Fernando que é ilegal, por ser um incentivo a desrespeitar os períodos de descanso. Por outro lado, dá jeito tanto ao patrão como a ele, porque permite encaixar nesse pagamento tudo o que se quiser como ajudas de custo – isentas de IRS e de Segurança Social. Disseram-lhe que está a ser prejudicado, na eventualidade de um desemprego, de uma doença, ou na reforma que irá receber um dia, mas o Fernando é optimista e o dinheiro faz-lhe falta agora, que tem trabalho, não está doente e vê a reforma a uma distância de mais de trinta anos – para além de que precisa de pagar ao empreiteiro.
Cada viagem que faz demora mais de dez dias, porque faz a rota da Escandinávia. Como pela Europa fora é proibido aos pesados de mercadorias circular ao domingo, tem de ficar muitas vezes parado ao frio, à espera da meia-noite. É aí que lhe dão as saudades e se põe a telefonar para casa, do telemóvel. O patrão, claro, vai descontar depois o preço no final do mês e vai fazer o mesmo com as chamadas recebidas em “roaming”. À chegada, vai ter tempo para descarregar, para carregar e para passar umas, poucas, horas com a família. Às vezes um dia inteiro.
Dorme na parte de trás do camião (eles dizem “tractor”), enrolado numas mantas e sem chegar a despir-se. Come de uma marmita, aquecida num fogareiro a gás, que a comida nos restaurantes das áreas de serviço é muito cara e não lhe chegava depois o dinheiro, por muitos quilómetros que fizesse, mesmo a seis cêntimos cada um. De vez em quando toma um duche rápido numa estação de serviço, em geral no regresso a casa, não vá a mulher repeli-lo pelo mau cheiro.
Tem colegas que trabalham para empresas espanholas. Dizem que ganham mais e que passam mais fins-de-semana em casa, já que lá os sábados e domingos são pagos à parte dos quilómetros. Ele não entende como é possível se as tarifas dos transportes são as mesmas por toda a Europa. Se as empresas espanholas ganham o mesmo que as portuguesas, como podem pagar mais? Deve ser treta, pensa o Fernando.
Querem um case study ideal para o diagnóstico do país? Não é preciso ir mais longe.
Por: António Ferreira