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Verbo sem futuro

Costumava sentar-me no alpendre compondo um ar abandonado sempre que queria mimos.

Por vezes para pintar um quadro mais dramático deixava-me escorregar até as fuças ficarem esparramadas no granito da entrada, quieto e mudo, só os olhos em que compunha um olhar melancólico mexiam, varriam o campo de visão como dois radares à espera de passos e posteriores afagos que me fizessem sentir mais humano.

Às vezes esperava horas assim, outras… cansado de esperar levantava-me e provocadoramente fazia xixi no tapete. A seguir podia contar com uma palmada ou um ralhete. Sabia disso mas escolhia isso a ficar sozinho, era preferível a dor da palmada ou o calor do ralhete, sempre eram formas de comunicação. Sozinho tempo demais é que não! Nasci para comunicar.

Quando o mais novo nasceu concentrou as atenções, os mimos e os risos. Deixaram de louvar as minhas glórias e andei uns tempos por ali como se fosse o menos importante da família. Percebi aos poucos que o mais novo precisava mais deles do que eu e apesar de me roubar os afetos eu adorava o puto, indefeso e chorão também ele fazia xixi nos tapetes. Levantei-me todas as noites para ver se ele dormia, adorava sentir-lhe a respiração sossegada e o riso durante o sonho. Quando o puto um dia adoeceu sentei-me horas a fio durante as noites de febre, perdi o sono e a rebeldia, achei que comigo ali nada poderia fazer-lhe mal.

O miúdo cresceu e eu recuperei os afetos e os afagos, ele próprio me devolveu com juros as noites de vigília. Aprendeu comigo a sentar-se no alpendre e a espojar-se no chão fresco em dias que iam aquecendo.

Naquela tarde de junho ouvi-lhes a conversa que tiveram um com o outro. Falaram sem se importar que eu ouvisse. O pequeno precisava de praia e eles de férias.

Jantámos e como tantas outras noites precedentes saí com ele. Eram invariavelmente passeios para um café numa das esplanadas da cidade. Essa noite fomos de carro!

Ele ía mais mudo que habitualmente, não assobiou nem meteu conversa comigo, sempre fui o seu melhor ouvinte, contava-me nos nossos passeios os amores e desamores da vida, partilhou comigo segredos, angústias e medos.

Essa noite não!

Nem uma palavra. Eu fiquei estranho e quieto no assento do carro, olhei pela janela e vi desaparecer as últimas luzes da cidade, apercebi-me de novos odores e novos contornos na paisagem.

O carro parou. Saímos noite dentro sempre em silêncio… um estranho silêncio, como se as palavras pudessem pesar.

Depois, puxou de um cigarro, sentou-se e fumou-o. Voltou subitamente ao carro sem me olhar e nada dizer.

Vi-o desaparecer na curva da estrada desconhecida, corri ainda até que cansado desisti.

Sinto-me fraco, quase desfalecido, faminto e só! Caiu-me a chuva e o medo em cima, o sol secou-me a pele e a língua.

Mantenho-me vivo porque os sonhos dos tempos passados me fazem ainda viver, sinto que a vida se me vai apagando como se vão apagando as memórias do carinho que lhes dei, dos sorrisos que lhes arranquei.

Desisto com pena não do meu curto futuro mas do triste futuro deles. Não são deuses como eu julgava, nem humanos como julgam eles. São apenas uma espécie que à força do desapego às outras caminham para a extinção por se lhes irem extinguindo assim as emoções.

Acabarão por abandonar-se uns aos outros como fizeram comigo.

Mais não digo, mais não posso. Morro como um fiel amigo. Mesmo agora quero-lhes bem.

O meu nome… Bobi

Por: Júlio Salvador

Comentários dos nossos leitores
Miguel Miranda migmirandamail@gmail.com
Comentário:
Excelente texto. parabéns ao Jornal o Interior pelos excelentes cronistas.
 

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