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Ventoso

1. Todos os anos, por essas fábricas de diplomas que alguns confundem com universidades, sucede o mesmo: hordas de íncubos e súcubos trajados de negro dão vazão à sua bestialidade, ânsia de obediência, frustrações várias, exercício de um poder de circunstância, exibição de marcas distintivas, etc. Os desgraçados que não alinham são perseguidos e ameaçados todo o ano. As vítimas são silenciadas. As direcções assobiam para o lado. É tradição, dizem estes animais. Na minha vida universitária nunca praxei ou fui praxado. Praxe a sério foi durante o serviço militar: uma valente cena de pancadaria colectiva num comboio, quando regressava a casa após os primeiros 15 dias de uma dura recruta. Bastou uma provocação de uns soldados que gostavam de mandar bocas aos instruendos, ou seja tirocinantes graduados, nos quais me incluía. Foi um vagão inteiro em pé de guerra. Voltando à “tradição”: para grandes males, grandes remédios. Eis a minha proposta. Todos os anos, em Outubro, imprimem-se milhares de auto colantes para os caloiros colocarem de forma visível onde quiserem, durante o período da “recepção”. Os dizeres seriam simples: um grande manguito com a legenda VAIS-ME PRAXAR MAS É O £}@}ﻼﻏﬥ☻, ó seu ѾѬʘ☻☻¨!!!

2. Recentemente, passou um programa no Canal Odisseia acerca da linguagem gestual aplicada aos políticos. O universo em análise era claramente o anglo-saxónico. Onde, como é sabido, foi consagrada a gestão da imagem dos actores políticos como uma tarefa de primeira água. E nada aí é deixado ao acaso. A partir de um determinado nível de exposição pública e de importância institucional, qualquer político que se preze terá que dominar um conjunto básico de procedimentos mais ou menos estilizados. Os quais são imprescindíveis para uma performance convincente, fazer passar uma mensagem positiva e reforçar a credibilidade. Ou seja, a forma capturou o conteúdo. Um bom político terá que ser necessariamente um bom actor, mas onde os gestos obrigatórios esmagam os artísticos. Dito de outra forma, um político bem sucedido não poderá jamais descurar um conjunto de técnicas de comunicação gestual, aplicadas a situações bem determinadas. E cuja margem de disponibilidade para o próprio é muito reduzida. Eis alguns exemplos referidos no programa:

1º O orador político deve convencer a audiência da espontaneidade e da naturalidade das suas declarações, o que se traduz na conveniência em aparecer primeiro o gesto e imediatamente depois as palavras. E de esse gesto (preferencialmente utilizando as mãos e a cabeça) ser dirigido exactamente para o mesmo lado para onde se fala. O exemplo mais conhecido de como a inobservância deste procedimento pode ter consequências trágicas, também referido na transmissão, foi o da célebre negação de Clinton em relação a aventuras sexuais com Monica Lewinski. O Presidente americano não só apontou com o dedo para o lado oposto para onde falava, como parou de agitar subtilmente a cabeça em sinal de negação enquanto proferia a declaração. Resultado: poucos ficaram convencidos de que dizia a verdade.

2º Em contexto mediático, um político não pode nunca deixar um gesto a meio. É um péssimo sinal de hesitação e falta de firmeza. Exemplo: a conhecida sequência da entrada de Blair na sua residência oficial em Downing Street, acompanhado da mulher, logo após ter sido empossado pela Rainha no seu 1º mandato. A certa altura, o novo Primeiro-Ministro passa o braço pelos ombros da mulher, que interpretou o gesto como sinal para o beijo protocolar. De imediato se voltou para Blair, o qual, em vez de consumar o ósculo, continuou a acenar à multidão, ignorando (olimpicamente) a mulher. Percebendo o erro, pouco depois abraçou-a, mas sem convencer ninguém da autenticidade do gesto. Claro que, nos dias seguintes a imprensa britânica não poupou as críticas a Blair pelo seu “repúdio”. Graças a um deslize aparentemente inócuo, os tablóides ousaram passar por cima do estado de graça próprio dos vencedores.

3º Outra técnica, utilizada especificamente em campanhas eleitorais, consiste em o candidato, antes e, sobretudo, depois do seu discurso, apontar para pessoas determinadas na audiência e, em seguida, saudá-las de forma individualizada. O recurso é claramente cénico, pois o candidato não aponta para, ou saúda realmente ninguém. Quer simplesmente transmitir a mensagem de que certos cidadãos, de quem ele é “próximo”, quiseram vir engrossar o seu caudal de apoiantes. E que esses cidadãos podiam ser um qualquer “de nós”. E de que a referida “proximidade” reforça a ideia de confiança dos eleitores no “seu” candidato. No fundo, é a evocação trivial da velha ideia liberal do “contrato social “ de Locke, fundadora da democracia americana. Pelas imagens mostradas na emissão, quer Obama quer Hillary Clinton, usaram e abusaram do expediente, durante as últimas eleições presidenciais.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Por: António Godinho Gil

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