Arquivo

Vendedor

observatório de ornitorrincos

Uma parte importante da população portuguesa labora na actividade de percorrer as freguesias para tentar convencer as pessoas, com falinhas mansas e brindes duvidosos, que o seu produto é melhor do que o da concorrência. Mas deixemos os políticos, e concentremos a nossa atenção na actividade profissional das vendas.

Para início de artigo, sejamos rigorosos na gramática. Vendedor não é um adjectivo. Assim, um vendedor não deveria ser designado por comercial. No máximo, um comerciante. Mas para isso o vendedor teria de ser substantivo, qualidade que nem sempre possui. Alguns são pouco mais que apostos oracionais ou simples adjuntos adnominais, quando andam aos pares. Pode haver – há, com certeza – profissionais do sector que sejam comerciais. Mas nesse caso, o poder aquisitivo necessário não está ao alcance de qualquer cartão gold.

Vender um produto não é muito diferente de convencer a mãe que foi o nosso tio emigrante em Macau e falecido em 1967 que partiu em cacos aquele valioso jarro do hall de entrada. E eu sou testemunha que muitos amigos de infância o conseguiam fazer. Pelo contrário, se alguém tiver uma namorada de qualidade estética incontestável (ou “gaja mesmo boa”, para quem tem dificuldades com articulações semânticas mais complexas e refinadas) e a própria mãe não acreditar, sugerindo que ela é apenas uma rapariga amável com simpatia por gays, talvez a profissão de vendedor esteja longe da plena potencialidade de um jovem à procura de emprego. Obviamente, não sugiro aqui nenhuma desistência. Há várias maneiras de aprender as técnicas de impingir a banha da cobra inerentes à profissão de vender. Por exemplo, frequentar seminários e workshops de vendas, duas semanas de férias com amigas da escola ou fazer uma inscrição numa juventude partidária.

Tal como os juízes devem decidir pela carreira de magistrado judicial ou do Ministério Público, também os vendedores, no difícil acesso à profissão – uma das condições para conseguir um emprego nesta área é não ter conseguido trabalho em nenhuma outra após vários anos de procura –, devem estar conscientes da opção praticamente irreversível entre a estrada e o balcão. A carreira ambulante, que leva o vendedor a percorrer terras onde nem o ex-ministro da Saúde tinha urgências para encerrar, é para gente aventureira, que gosta de viajar ou pelo menos passar algumas noites fora do leito conjugal. Advertência, caros amigos, à confusão entre vendedores ambulantes e vendedoras ambulâncias, que são aquelas que ligam a sirene quando têm alguém dentro. Já o trilho balconista, embora menos excitante e temerário, acarreta consigo as vantagens da vida sedentária. A certeza do dia seguinte, a familiaridade das caras e um amante secreto fixo.

As vendas viram surgir nos últimos tempos uma carreira especial, dedicada aos espaços comerciais alargados, a chamada “rapariguinha do shopping”, embora os centros comerciais também admitam homens, desde que devidamente fardados ou engravatados. Mas a importância sociológica das rapariguinhas do shopping é incomparável a poucos ofícios contemporâneos. Nenhuma outra profissão contribuiu tanto para a novíssima “sociedade do hiperconsumo” (Lipovetsky, 2007, que isto aqui não é só broeirice) ao conseguir atrair os homens para megaespaços com lojas onde nunca entrariam se não fossem as meninas que lá trabalham (porque apesar da insistência das companhias conjugais, a espécie masculina sempre arranjou formas de escapar do inferno das compras).

Por: Nuno Amaral Jerónimo

Sobre o autor

Leave a Reply