Arquivo

Usque quantum, Americe, patientia nostra abutris?

Ou de como se tem suportado a arrogância de Américo Rodrigues

A Américo Rodrigues, licenciado em Língua e Cultura Portuguesas, foi confiada a direcção artística do Teatro Municipal da Guarda (TMG) por responsáveis da anterior vereação da autarquia. Tendo a Câmara Municipal apostado fortemente no acesso à cultura por parte da população da região, o cargo que ocupa é de grande responsabilidade, um cargo de serviço a toda a comunidade, um lugar pago pelos fundos públicos.

Recai sobre o director artístico, em conjunto com o director financeiro, a escolha da programação das actividades artísticas do TMG, incluindo as da galeria de arte que se encontra nas suas instalações. Esta escolha não se nos afigura tarefa fácil. A ponderação tem de ter em conta os fundos existentes e a necessidade de gerar receitas que possibilitem a organização de novos espectáculos/actividades/formação; tem de ter em conta a oferta e a sua qualidade; tem de ter em conta os vários públicos e as exigências decorrentes dos seus níveis etário e cultural; tem de saber como se processa a formação desses públicos, a partir de um corpus que assumidamente se estipula como básico ou canónico a fim de, a partir do seu conhecimento, se poder partir para novos caminhos.

Espera-se deste director artístico uma formação especializada que abranja desde o teatro às artes plásticas; espera-se deste director a sabedoria e a humildade que lhe permitam colaborar em pé de igualdade com as restantes organizações de fins similares, tanto a nível regional como num âmbito geográfico mais alargado; espera-se dele o dinamismo e o brio de alguém que tem a preocupação do bem comum.

Partindo do princípio que a escolha de Américo Rodrigues era a escolha certa para o lugar que ocupa, muito se tem estranhado, consequentemente, algumas intervenções suas que temos lido num jornal, o Terras da Beira, que vão desde invectivas de ordem pessoal a declarações empolgadas que denunciam um arrojo exacerbado em opiniões pouco comedidas como a do passado dia 20 de Abril, que resultou num insulto ao próprio público do TMG.

Limito-me a citar da primeira página do Terras da Beira da semana passada, uma frase que, aliás, se encontra contextualizada em entrevista: “Se déssemos ao povo apenas o que o povo gosta não havia cultura”. Espantosa afirmação. Em primeiro lugar, porque se deduz da frase que a existência de cultura depende de alguém “dar” algo ao povo. Em segundo lugar, porque se estabelecem duas posições, a de alguém que dá, e que não faz o que o povo quer, e a de um povo que recebe passivamente o que alguém lhe dá.

Relativamente à primeira dedução há que esclarecer que cultura, em termos muito simples, é o conjunto de práticas vivenciais provenientes de toda uma sociedade ou comunidade, uma prática geradora de transformação. Cultura não é, pois, algo que se dê. Pode ser algo que se apresenta num lugar por provir de uma prática de outro lugar. Uma das funções do director artístico não é “dar”, mas, exactamente, dar a conhecer, mostrando, várias manifestações de ordem cultural. Se, por qualquer razão, ele não der a conhecer essas manifestações, a cultura não deixa de existir, pelo simples facto de que ela, a cultura, está para além da vontade individual de qualquer director artístico. A cultura decorre não apenas da própria cultura mas da energia telúrica, da força da vida de toda a humanidade.

Quanto à segunda dedução, posiciona-se em primeiro plano (“Se déssemos…”) o “nós” majestático do director artístico do TMG, dizendo que “dá”; para segundo plano, em situação de ausência, fica relegado o povo, o público do TMG, de quem se afirma que não gosta, pelo menos muitas vezes, daquilo que lhe é “dado”. Interessante é também verificar que o director artístico não fala com o povo mas do povo. O público está, consequentemente, eliminado do seu acto comunicacional. Então com quem está a falar Américo Rodrigues?

Povo é uma designação que ouvimos ao longo da história ocidental para referir as classes ou estratos sociais mais baixos, ou menos favorecidos, ou indiferenciados de uma sociedade. Em qualquer destes casos, povo é um termo que conota uma homogeneidade baseada quer em parâmetros económicos, quer em parâmetros culturais/educacionais. Povo, na citação, parece provir desta acepção da palavra, pois, ao falar de povo como de um corpo social que não o de quem fala, implica a existência de outra classe ou estrato social que, neste caso, lhe é superior. Há termos que se definem pelo que excluem. Neste caso nós, o público potencial do TMG, somos o povo, homogéneo, indiferenciado, de onde ele, Américo Rodrigues, se auto-exclui, para ir ocupar a posição de superioridade de quem não é povo.

Mas como explicar, então, que nós, povo indiferenciado, até gostemos da programação do TMG, desde a Orquestra Vegetal de Viena à iniciativa com os jovens do Reformatório do Mondego?

Como explicar que, pelo contrário, possamos não gostar de experimentalismos em que o mote seja sistematicamente a incomunicação entre homens e mulheres quando podíamos estar a ver novas encenações das peças de Aristófanes, Beckett, Brecht, Chekhov, Jean Genet, Pinter, Sófocles ou Strindberg? Ou adaptações para crianças de peças de Shakespeare, Dickens, Molière ou de mitos gregos?

Como explicar que nós, povo homogéneo, até possamos não gostar das óperas e dos ballets que já passaram pelo TMG, não porque não estejamos familiarizados com eles, mas porque já tenhamos visto melhor em Itália, Londres ou Nova Iorque?

Mas como explicar que nós gostemos também da cultura popular, nacional ou estrangeira, desde os espirituais negros dos Estados Unidos da América aos cantares do Alentejo ou ao seu reaproveitamento por Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira ou mesmo Lopes Graça?

Como explicar que nós, povo homogéneo, desconfiemos das centralizações culturais por sabermos que favorecem interesses particulares estabelecidos e não a tal transformação necessária à criação de cultura?

É que o público do TMG é heterogéneo. Nós, (desta vez um nós não majestático e, quiçá, retórico, mas um nós global e diversificado), nós não somos, de facto, uma massa uniforme e acrítica. Se, por vezes, não gostamos, temos razões diversas para não gostar; e, se gostamos, temos razões diversas para gostar.

E nós, público, exigimos. Exigimos, acima de tudo, que o director artístico respeite a nossa diversidade e comunique connosco; que fale não do “povo” mas com o “povo”; que seja, pois, dialogante e aberto às várias sensibilidades sociais – porque na sua programação tem de haver lugar para agradar a todos e a cada um no seguimento de uma política de formação consistente.

Exigimos também que o seu trabalho seja de serviço a toda a comunidade, como o é o trabalho das restantes organizações culturais. Mas a ele exigimos porque, ao director artístico do TMG, o trabalho é-lhe pago por nós, por esse povo de quem fala – desta vez, sim, todo e indiferenciado.

Por: Luísa Queiroz de Campos *

* Inicia nesta edição colaboração mensal. É Doutorada em Literatura Anglo-Americana e Professora Coordenadora do IPG

Sobre o autor

Leave a Reply