António Arnaut deixou-nos, ocupando esse enorme vazio com uma obra social única, com uma obra literária sirénica e com a memória de um ser humano profundamente bom. Deixo-vos um texto da minha reflexão que está incluído na sua fotobiografia.
«Foi numa viagem a Lisboa que tomei consciência da pessoa humana que é António Arnaut.
Só conhecia a dimensão pública e política, como a maioria das pessoas.
Fomos juntos, no mesmo carro. Ele com destino à Assembleia da República, eu, rumo à sede da Ordem dos Médicos, na avenida Gago Coutinho. Foi no dia das comemorações dos 40 anos do 25 de Abril. Ao chegar à capital, e apesar de estar atrasado, não resisti a acompanhá-lo ao Parlamento para o ouvir declamar dois poemas alusivos à Liberdade. Eram da sua autoria. Ao lê-los, pareceu soltar-se-lhe a alma. Como se fizesse parte da própria escrita.
A personalidade do António Arnaut manter-se-á intemporal pela obra que edificou e permanecerá gravada, para sempre, na memória de quem o conheceu pessoalmente.
De entre toda a sua extensa obra, a criação de um sistema público de saúde foi o seu maior contributo para o bem-estar dos homens e das mulheres. Será sobretudo por esse feito que será lembrado.
Portugal era, então, um país em busca de uma identidade social, procurando consolidar a sua liberdade adquirida e concretizar os seus sonhos de Democracia pubescente.
O Serviço Nacional de Saúde não se limitou a criar e organizar uma rede de cuidados de saúde. O SNS uniu um país dividido, consolidou a esperança, ligou e continua a ligar gerações distantes. Atravessa as décadas – persistente e determinado – semeando os seus valores de entreajuda e solidariedade. Incansavelmente, percorrerá tempos de abundância e tempos de carências. Mas resistirá enquanto todos acreditarem nele e nos seus ideais que transporta.
O conjunto da obra de António Arnaut é de uma naturalidade cristalina. Está despida de artifícios, de filtros ou demagogias. É a perfeita transposição da sua personalidade. A sua obra literária, política, social, associativa e profissional tem a marca do ser humano António Arnaut.
O SNS não foi somente edificado por António Arnaut. O SNS é o próprio António Arnaut. É o seu humanismo, o seu sentido de justiça, a sua preocupação social, a sua busca de um mundo mais justo, a sua persistência, a sua alegria, a sua vivacidade, a sua permanente regeneração, a sua utopia.
Foram estas as impressões que me preencheram, numa trivial viagem a Lisboa. Senti esta ligação íntima e perfeita entre um homem e a sua obra.
Assim resistirá a personalidade ao tempo que passa e à fragilidade da memória.
Quem mais a reconhecerá serão as gerações futuras, quando lhes faltarem a força e a vontade, quando perpassarem momentos de vazio e procura vã. Lembrar-se-ão que, um dia, alguém quis Acreditar e esse único pensamento será capaz de lhes devolver a Esperança».
É deste António Arnaut que sentirei falta. Também.
Por: Carlos Cortes
* Presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos