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Uma tragédia síria

Theatrum Mundi

Para os mais desatentos, o conflito da Síria prolonga-se há dois anos e já causou cem mil mortos e dois milhões de deslocados. Como acaba de informar o Alto Comissariado da ONU para os refugiados (ACNUR), cerca de um terço da população síria foi obrigada a deixar a sua habitação e os seus bens e muitos deles vivem hoje em campos de refugiados nos países vizinhos. A Síria é um pais crucial no xadrez político do Próximo e Médio Oriente mas, ao contrário do que muitos vaticinavam, a guerra civil no país não chegou a internacionalizar-se ao ponto, por exemplo, de provocar o reacender da guerra civil no Líbano ou a ingerência militar da Turquia, de Israel ou do Irão. Na origem da guerra civil está o levantamento popular contra o regime autoritário do presidente Assad, um movimento exaltado por muitos como parte da Primavera árabe que derrubou regimes corruptos e decadentes na Tunísia, na Líbia e no Egito, e obrigou outros a reconhecer e negociar com as respetivas oposições. Passados dois anos destes levantamentos, já ninguém fala de Primavera árabe. Há certamente um renascimento, mas os avanços e os muitos mais recuos em todos estes processos obrigam a não esquecer que eles são ambíguos, contingentes e sobretudo de resultado indeterminado. Cada sociedade fez o seu caminho, com mais ou menos violência, quase nunca imune à importação das reivindicações e ao contágio das condições internas, sempre avançando no caminho periclitante entre a transformação social radical e a queda no caos político.

Nestes dois anos, os levantamentos provocaram a queda de dirigentes que se tinham perpetuado na cadeira do poder e o exerciam de forma arbitrária, como o egípcio Mubarak e o líbio Khadafi, mas também trouxeram a ingerência militar ocidental e o apoio a movimentos oposicionistas muito heterogéneos e fragmentados, com projetos nacionais por vezes contraditórios e sem vontade ou capacidade de negociar a futura ordem política e social. Provavelmente a tragédia na Síria é que concentra tudo o que de mais perigoso e desafiador poderia ter confluído num processo de contestação política no Médio Oriente. Trata-se de um país na encruzilhada dos interesses estratégicos regionais do Irão, Turquia e Israel, crucial na estratégia de sobrevivência política do regime dos ayatollahs e de movimentos como o Hezbollah, e encerrado na lógica das novas confluências de poderes das grandes potências, designadamente da nova competição entre Estados Unidos e Rússia. Mas também se trata de um país cujo regime, crente na validade estratégica daquelas premissas, mostrou estar disposto a utilizar todos os meios ao seu alcance para se perpetuar no poder e defender os privilégios económicos e políticos estabelecidos ao longo de décadas.

Com uma ação militar legitimada pela ONU a necessitar os votos (ou a abstenção) da Rússia e da China – acérrimos defensores de Assad mas sobretudo do princípio da não ingerência da ONU nos assuntos internos dos estados membros – o presidente sírio apostou tudo na divisão da comunidade internacional. Dez anos após o início das campanhas no Afeganistão e no Iraque, poucos dirigentes políticos estão dispostos a defender publicamente ações militares de resultados, e efeitos colaterais, incertos contra a posição do Conselho de Segurança da ONU. Depois de anos de abuso da posição imperial norte-americana e do argumento humanitário para a utilização da força, as opiniões públicas assistem com indiferença, no intervalo das sestas estivais, à chacina de civis e à suprema humilhação humana que é a vida nos campos de refugiados. Novos argumento reconciliadores das consciências ganham adeptos, a saber, que as imagens da utilização de armas químicas são forjadas, que governo e oposição são todos iguais e todos assassinos, que a haver mortos é preferível que se matem eles uns aos outros – enquanto nós por cá lavamos as mãos e evitamos dilemas morais. (Este último argumento foi esgrimido em direto, numa televisão nacional, por uma figura tutelar da democracia portuguesa.)

Depois da década marcada pelas decisões desastrosas de G. W. Bush, o dilema sírio era inevitável e decorre de uma certa fadiga da compaixão das opiniões públicas (e do relativismo absoluto) que deixa muitos dirigentes de mãos atadas. (Veja-se o recuo do britânico Cameron). Mas infelizmente a tragédia dos sírios, dos que servem de alvo às armas químicas e dos que malvivem em campos de refugiados, afinal é lá longe, numa terra de gente para muitos violenta por natureza e de que pouco sabemos.

Por: Marcos Farias Ferreira

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