Arquivo

Uma Indústria Florescente

Ainda me lembro da consoada em casa dos meus avós, em Pousade, há muitos anos atrás. Sete filhos, genros e noras, dezoito netos. Mesmo que não estivessem todos era sempre uma festa, que Natal não é Natal sem crianças. Falham-me aqui os detalhes da cronologia, mas recordo que havia, ou tinha havido antes, a matança do porco. Havia também neve, ou ao menos sobrava o frio. Lembro-me do sabor da sopa da minha avó, feita na panela de ferro, das papas de milho com açúcar amarelo. É verdade que não havia água canalizada, nem esgotos, nem frigoríficos ou televisão, mas havia outras compensações para essas falhas, hoje básicas, de um viver civilizado.

Nesses tempos não havia lares de terceira idade. Havia filhas, ou noras, que se iam revezando no cuidado dos velhos. A esperança de vida não era também como hoje, em que à nascença se pode contar, pelo menos para as mulheres, com 78 anos de longevidade, e aos 65 anos se pode contar legitimamente com pelo menos mais vinte anos de vida. Morria-se mais cedo e em família. Esta tratava dos seus próprios assuntos e não delegava em terceiros. Isto era possível porque as mulheres, em geral, se não empregavam. Ficavam em casa, a tratar dos filhos e dos velhos, com a ajuda das vizinhas.

Hoje as mulheres trabalham. Têm menos filhos, quando os têm, e não têm condições para tratar dos velhos. Vivem em casas pequenas, hipotecadas ao banco. São precisos dois salários para aguentar o barco e não há espaço para as antigas obrigações da família alargada. Se houver crianças tem de haver infantário, ou ATL, ou então a rua e seja o que Deus quiser. Para os velhos há os lares ou, na melhor das hipóteses, o Apoio Domiciliário.

Nas nossas aldeias, cortesia da Politica Agrícola Comum e das opções estratégicas do nosso actual Presidente da República, desapareceu há muito o último vestígio de actividade económica Não há agricultura e morre aos poucos a pastorícia. Há contudo uma indústria florescente: a dos lares de terceira idade. Pouco a pouco, as aldeias viram-se povoadas de velhos. Com os actuais cuidados de saúde, com uma melhor alimentação, com um clima mais suave (cortesia do aquecimento global), com água canalizada, com uma rede de estradas que aproxima todos dos hospitais (melhor equipados, com mais médicos e recursos), morrer novo tornou-se uma raridade. Os inúmeros lares de terceira idade que hoje pululam pelas nossas aldeias estão pejados de nonagenários. Estes pagam com uma percentagem das reformas o alojamento e os cuidados que lhes fornecem. O lar, por sua vez, para além dos cuidados aos velhos, fornece empregos à comunidade, onde movimenta mais dinheiro do que ninguém.

É por isso que as eleições para a direcção do Lar, quando as há, são tão ou mais importantes que as eleições para a Junta. É aliás vulgar que o presidente desta acumule funções como Director do Lar. Quanto maior e mais rápido for o envelhecimento das populações, maior e mais depressa alcançarão o máximo de poder. Pode ter chegado a altura de verificar como é exercido.

Sugestões:

Um livro: Os Senhores do Tempo (Tim Flannery, Presença 2006), sobre o aquecimento global. Um dos mais importantes livros do ano, a ler com atenção (é possível evitar o pior) e coragem (a situação criada é muito má e é muito difícil de reverter).

Outro livro: A Revolução da Riqueza (Alvin e Heidi Tofller, Actual Editores 2006). Há vinte anos, o casal Toffler adivinhou boa parte do que seria o mundo de hoje. Veremos se conseguem o mesmo com este livro.

Um álbum: For the Stars (Anne Sofie von Otter & Elvis Costello, 2001).

Por: António Ferreira

Sobre o autor

Leave a Reply