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Uma estratégia bem articulada

Razão e Região

Na última edição, Luís Baptista-Martins, em Editorial, fez uma afirmação que me deixou perplexo: «José Sócrates ainda não mostrou uma estratégia clara sobre o que vai fazer nesta legislatura». Caro Director, desde Agosto que José Sócrates deixou claro que a sua estratégia consiste em promover um plano tecnológico que induza uma mudança qualitativa no nosso sistema produtivo, em recuperar, durante a legislatura, os empregos perdidos durante os últimos três anos e, finalmente, em proteger o grupo social mais débil quer em recursos financeiros quer em capacidade de resposta aos riscos: os mais idosos. Três objectivos estratégicos: economia, emprego e solidariedade. Claros como a água. E definidos como prioridades.

A questão do referendo sobre a Europa (em simultâneo com as autárquicas) e a venda livre de medicamentos não sujeitos a prescrição médica foram exemplos de acção política seleccionada – em nome do interesse geral – formulados no seu discurso de posse. A limitação dos mandatos, as recentes medidas para descongestionamento do sistema judicial, o acompanhamento de proximidade em relação às empresas tendo em vista a sua modernização, o emprego ou a sua reestruturação, a criação de um regime para projectos com Potencial Interesse Nacional, a colocação de algumas centenas de jovens licenciados nos melhores centros de excelência internacionais, as medidas para combater o generalizado insucesso na matemática ou para lançar a universalização do conhecimento do inglês, o prolongamento do tempo de funcionamento das escolas do ensino básico são medidas concretas, pragmaticamente formuladas, mas que ganham sentido no quadro político de referência que José Sócrates tem vindo a expor regularmente – e desde há muito tempo – com bastante clareza e que já condensara num documento a que chamou «Novas Fronteiras» (Visão, 02.09.2004).

Uma coisa é certa: inverteu a estratégia – errada – das prioridades concentrando os esforços no crescimento como condição para equilibrar as contas públicas, relançar o emprego e desafogar financeiramente a segurança social. E nesta estratégia é muito importante a remoção de obstáculos à sua consecução, mas é determinante, sobretudo, o accionamento do plano tecnológico como protagonista central. Porque não se trata, como poderia parecer, somente de tecnologia, mas também de informação, de conhecimento, de ciência, de investigação e desenvolvimento, de qualificação de recursos humanos e de inovação. É este o eixo. É esta a estratégia a promover, no quadro de uma complexa rede conceptual que define o seu quadro de referência e que ele há muito identificou como o horizonte da esquerda moderna na sociedade da informação: reconhecimento da dimensão transversal do consumidor (consumidores somos todos nós) para que seja sempre clara a motivação da decisão em nome do interesse geral; a esfera pública como eficiente garantia de prestação universal de serviços e bens públicos essenciais; nova geração de políticas sociais, lá onde a uma cobertura universal dos riscos sociais (primeira geração) e a uma discriminação positiva que garantisse a cobertura de riscos a sectores particularmente desprotegidos (segunda geração) se segue, agora, a preocupação de prevenir os próprios riscos sociais mediante a criação de condições de sustentabilidade económica e social dos cidadãos, a criação de estruturas capazes de responderem às novas condições de vida, a procura de respostas para as novas minorias e a garantia de sustentabilidade financeira da segurança social; novas políticas para o ambiente, garantindo a presença da esfera pública na defesa, promoção e redistribuição dos diversos bens ambientais e do equilíbrio futuro do ecossistema, em nome de uma solidariedade ecológica transgeracional; aposta no aprofundamento da integração europeia como garantia de uma genuína liderança num quadro multilateral. Este o quadro geral que permite compreender a coerência e a lógica subjacente aos passos concretos que o governo está a dar para libertar o sistema de impasses inúteis, para reforçar a sua coesão e para lhe imprimir uma nova dinâmica estrutural, designadamente nos sistemas produtivos. Porque é com medidas concretas que as grandes reformas podem ganhar corpo, sobretudo quando elas assentam numa visão articulada da realidade.

Não sendo possível a um exercício sério da política seguir em velocidade o ritmo estonteante do «tam-tam» informativo dos media, nem assim me parece que sejam poucas as medidas avançadas pelo XVII Governo constitucional, que sejam superficiais os objectivos estratégicos assumidos ou que sejam ambíguos os valores declarados como orientadores da acção política. É certo que o quadro categorial que comanda a acção política não coincide com o quadro categorial que comanda a acção mediática: a busca incessante da novidade não pode constituir-se como estratégia da acção política; o domínio da emoção não pode determinar o estado de alma que comanda a actividade política; a velocidade frenética dos media não pode ser considerada exigência central da acção política.

E, todavia, estas categorias tendem a entrar cada vez mais subliminarmente no aparelho conceptual dos colunistas de modo a determinar-lhes o quadro de exigências. Em particular, a novidade e a velocidade estão a configurar cada vez mais o quadro de referência analítico de colunistas, editorialistas e comentadores. É certo que a política tem subido demasiadamente ao palco mediático e, por isso, ela própria induz esta confusão, mas também é verdade que quando ela procura distanciar-se um pouco dessa exigência espectacular é imediatamente considerada inoperante e hostil à opinião pública. E, todavia, só essa distância é que lhe pode voltar a dar a identidade perdida.

Por: João de Almeida Santos

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