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Uma esquina, um limpador de chaminés

Opinião – Ovo de Colombo

Muitos apressam-se a conhecer as margens das grandes cidades mais para passarem a ignorá-la e fingir que ela não existe do que para lutar contra a ruindade de cada beco sem luz. Mas mesmo fechando os olhos, nós sabemos que a miséria do submundo londrino (como de muitas outras grandes cidades) nunca esteve extinta, e “Oliver Twist”, que tão depressa se precipita sobre ela, deixa que as lágrimas da orfandade lhe escorram pela face num coração ainda ingénuo.

Inicialmente Charles Dickens dera a conhecer o seu herói não em papel-romance, mas sim em papel-folhetim. Oliver, menino órfão que vivia num abrigo para pobres (“workhouses”), com pouco alimento, e trabalhos sem fim, viu-se forçado a fugir rumo a Londres quando ainda só tinha os seus pequeninos e magros 11 anos. E embora as fugas tenham por vezes uma certa dose de esperança, a infância escrava de Oliver fê-lo tropeçar em Artful Dodge, que logo se mostrara muito hábil na sua arte de se esquivar.

Dodge, como um bom “dodgy” deve ser, logo se encarregara de levar Oliver aos olhos de lince do judeu Fagin, e a partir daí é que ficamos a conhecer toda a pobreza das vidas sem agasalho: Sikes, o assaltante de casas; Nancy, a impulsiva de bom coração, que tanta curiosidade despertara em mim; Master Bates, a criança, que tal como Dodge, é explorada por Fagin; o Sr. Bumble, que está responsável pela inspecção dos orfanatos; um Monks, que afinal não o é; um Noah Claypole, que depois deixa de o ser; e tantos outros que correm em busca da infância que nunca tiveram.

No mundo dickensiano ora somos atirados para ruas acizentadas, ora somos forçados a expiar conversas que nem a própria sombra deveria ouvir. E enquanto o Sr. Brownlow, a menina Maylie e o Dr. Losberne lutam pelas migalhas de uma justiça já gasta, Oliver cala, foge, e chove (sim, porque aqui as nuvens espreitam-lhe vezes demais, as pernas correm-lhe depressa demais, em silêncios apertados demais): «O rapaz dormia profundamente numa tosca cama feita no chão, tão pálido de ansiedade e de tristeza, e da reclusão em que vivia confinado, que lembrava a morte: não a morte que vemos com mortalha e caixão; a morte com o aspecto que apresenta quando a vida acaba de partir, quando um espírito jovem e meigo voou, há apenas um instante, para o Céu e o ar corrupto do mundo ainda não teve tempo de bafejar o pó mutável que ele consagrou».

Mas afinal que cidade é esta onde para conseguires sobreviver tens de ser vil e infame? Quem é Oliver? Porque é que o Sr. Brownlow pressentiu no seu rosto uma saudade amiga? A história dorme e ressuscita em cada capítulo e agora com o livro pousado na mesinha de cabeceira sinto que nada repousa. Do que sinto mais falta? Do abismo de Nancy, da noite que, para o bem e para o mal, fica sempre encarregue a ela própria, do sorriso distante de Dick, do limpador de chaminés (não o Sr. Gamfield, mas o de William Blake).

Melanie Alves*

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

**Pode visitar: www.aosomdapele.tumblr.com

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