«Papá, pergunta-me ele, é verdade que os ricos são os mais fortes do mundo? – Sim, Iliucha, digo-lhe eu, não há ninguém mais forte do que o rico.
– Papá, vou enriquecer, vou ser oficial do exército e vou vencer todos os inimigos, o czar dá-me uma medalha e então eu venho cá e ninguém se atreverá comigo. Depois calou-se e disse, com os lábios a tremer, a tremer: Papá, que má cidade é a nossa!».
Ler é questionar, escrever é continuar a questionar, mas procurando já algumas respostas. O que Dostoiévski faz vai para além disso: se numa das suas histórias houver uma ceia entre míopes e cegos, e no final surgir um morto, ninguém ficará isento de culpa, incluindo o próprio morto. Durante toda a sua vida, o autor terá lavrado sobre a ferrugem da miséria e da pobreza para tentar arrancar os pecados que se colam a todas as camadas humanas.
Sempre senti um fascínio terrível pelas letras russas. Primeiro foi o fascínio pelo fascínio, mais tarde passou a ser o impulso louco de perceber a mente maltrapilha, hoje, é uma mistura de ambos. Os “Irmãos Karamázov” foi o último livro de Dostoiévski e, segundo Freud, «a maior obra da história». Eu não terei o impulso de elevar o romance a esse grau, mas consigo ver nele fragmentos de histórias que ficaram para trás. Com o seu jeito impudente de desmascarar até o mais inocente, este Dostoiévski é feito de ritmos lentos, cheio de reticências e parêntesis.
Logo no início são-nos apresentados três irmãos e um pai que pertencem a uma Rússia que já se habituou ao horror humano. A voz do narrador indica-nos Aliocha como o herói, claro que o leitor será livre de querer seguir essa voz ou não, mas com um coração frouxo sentir-nos-emos tentados a depositar nele todas as esperanças: «Senhores, meus queridos senhores, sejamos todos generosos e corajosos como Iliúchetchka; inteligentes, generosos e corajosos como Kólia (e que ainda será muito mais inteligente quando crescer); e sejamos tímidos, mas inteligentes como Kartachov».
Num crime em câmara lenta, São Petersburgo é uma personagem e a alma humana é a cidade a que tudo dá início. Primeiro caminha-se nela de passadas largas e seguras, para depois gatinhar em cartas bêbadas e fés de três mil rublos. Kólia Krasotkin, não sendo a personagem principal, foi aquela que me despertou mais interesse. Adulto, antes de ser menino, aventurou-se precocemente nos livros, rejeitando qualquer género de sentimentalismo. E embora nas primeiras passagens nos seja descrito como uma criança um tanto ou quanto arrogante, a amizade que Aliocha lhe mostrou tê-lo-á encorajado a ser diferente: «Sabe uma coisa? Durante o último mês tenho dito para comigo: Ou ficamos amigos à primeira vista, para sempre, ou à primeira vista, despedimo-nos como inimigos até à morte!».
Vidas precoces e sem alguém a quem chamar de pai levantam-se assim – sem afago, e sem lusco-fusco.
Melanie Alves*
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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