Tenho para mim que vivemos um conceito errado do que é comungar com a divindade. O pressuposto católico de um Deus uno que tudo rege, tudo vê e que afirma a nossa capacidade de auto-determinação, não nos convence quando nos encontramos perante situações de dor e desconforto tão grandes que nos apetece… morrer!
Não há capacidade humana de auto-determinação em situação de crise aguda, nestes casos o que há é desespero. Se a crise aguda evoluir dolorosamente para crónica, não nos habituamos ao infortúnio, invariavelmente caminhamos para a sensação de abandono do Deus em que acreditávamos.
É certo que a Igreja nos descreve os exemplos dos mártires. É certo que há quem sorria no meio da dor e ofereça a Deus esse sofrimento. Acho que esses são muito superiores a mim que sou fraco!
Eu por mim, sem deixar de ser católico, proponho outro conceito de vida em comunhão com Deus. Assumir o pedacinho de Deus que há em cada um de nós, de tal forma que cada um e todos se constituam como uma energia de suporte e conforto aos outros que sofrem. Isto é… não podemos procurar Deus fora do homem, é uma perda de tempo porque dificilmente o encontraremos.
Ontem, como faço diariamente, percorria os corredores do Hospital.
Numa zona fora das áreas de prestação de cuidados, num hall, ouvi uma tosse escondida num WC, no meio da tosse o esforço aflitivo de uma mulher para tentar vomitar. Misturando-se com os dois sons, uma vozinha de criança que dizia… “mãe”… “mãe”…
Foi esta voz que me acordou o tal pedacinho de Deus que todos nós transportamos.
Sem poder olhar porque a porta fechada escondia a vergonha, a impotência e a solidão da mulher, vi no entanto a imagem do que se passava lá dentro.
Uma criança perdida num mundo adverso onde não conhece ninguém. Uma criança de 5 anos que vê a mãe em sofrimento num sítio perdido de referências, ao sabor de dezenas de olhares estranhos. Uma criança perdida, atormentada por um medo que não percebe, um medo de ficar sozinha.
O impulso e a autoridade da bata de enfermeiro deu-me a força e confiança necessárias para abrir a porta.
Uma mulher ainda nova, agarrada à barriga, tossia e vomitava debruçada sobre a sanita, em dois metros quadrados de um espaço estranho. A criança agarrava-se com as mãozinhas ao vestido da mãe como se aquele agarrar a fizesse sentir menos perdida e mais segura. O meu primeiro olhar, que tentei tranquilizador, foi para a criança que me olhava num misto de medo e súplica, não chorava… O medo subjetivo não dá choro, dá sofrimento. Perguntei apenas… É a tua mãe?
Acenou que sim com a cabecita loira.
Fiz-lhe uma festa na cabeça, pousei uma mão no ombro da mulher e perguntei. Vamos ter de cuidar dessa tosse, está num bom sítio, venha comigo à urgência.
A mulher limpou a boca e o rimel misturado com lágrimas de esforço que lhe manchavam a cara. Recompôs-se um pouco e disse: «Muito obrigado, não é preciso… Isto são nervos, tenho o meu pai a morrer!»
Então, olhou a filha com ternura. Tenho a certeza que a mulher se apercebeu que o que despertou a atenção do enfermeiro, mais do que a sua tosse e a convulsão gástrica, foi a vozinha aflita da filha.
A mulher soltou o seu pedacinho de Deus e percebeu que amava a criança e era preciso um sobre-esforço para a proteger nesse momento mais que ao pai agónico entregue aos cuidados de outros. O pai, possivelmente, se o estado de consciência ainda lho permitisse, soltaria o seu pedacinho de Deus de forma a confortar aquela filha que somatizava em lágrimas e vómitos a dolorosa antecipação de o ver partir. E a criança? A criança aprenderia no olhar da mãe, na serenidade do avô e na ajuda do enfermeiro que todos temos um pedacinho de Deus que devemos deixar manifestar-se sem vergonha quando a sensibilidade no-lo pede. Esta criança deixará soltar o seu pedacinho quando a vida um dia lho pedir.
É apenas isto que também a vida nos pede a todos e particularmente aos profissionais de saúde. A nossa bata não pode ser nunca vestida com vaidade, isso torna-nos frios e auto-valoriza apenas competências técnicas. Também as máquinas as terão um dia…
A nossa bata é vestida com espírito de missão e serviço. Isso dá-nos ouvidos para ouvir para além das paredes do óbvio e dá-nos olhos para olhar para além do visível.
Crentes ou não, soltemos o pedacinho de Deus em nós.
Por Júlio Salvador