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Um monte e uma vida

Vidas

Dizem que é uma paisagem bonita. Lá longe, um grande monte verde à minha frente. Vejo-o todos os dias no mesmo sítio. Nada se altera nele a não ser, por vezes, a cor. Para mim não é feio nem bonito. É só um monte verde que muda de cor.

O que mais gosto nele é o que há atrás de si. As vidas que ele esconde e que passo os dias a adivinhar. Tenho saudades dos tempos em que também eu lá vivi. Imagino a minha casa. As pessoas com quem falava todos os dias. As rotinas. Imagino-te a ti. Como seria a vida se ainda a vivêssemos. Dizem que foste para o céu. Será? Nunca acreditei muito nisso. Mas é mais reconfortante saber-te no céu que a seres comido por bichos e não passares de uma carcaça de ossos debaixo da terra.

Eu estou aqui à espera de coisa nenhuma. Eu e o monte que me olha nos olhos sem pestanejar.

Os filhos vêm, de vez em quando, cumprir a obrigação da visita. Vejo-lhes a culpa estampada no rosto, mas depois partem mais aliviados, por pensarem que não podiam fazer mais, quando finjo que não os conheço, confundo-lhes os nomes propositadamente.

Que pena não ter partido contigo. Que pena o estado em que me encontro.

Tenho tantas saudades de quando vivíamos. Tenho tantas saudades dos nossos filhos. Sinto-lhes o cheiro de bebés, esse cheiro que nunca conseguimos largar. Sinto-lhes as mãos pequenas e macias nas minhas, como conchas, umas mãos que também nunca conseguimos largar.

Nasce uma pena em mim que o fim do caminho seja isto!

Gostava de ter feito tantas coisas que não fiz! Ter dito o que nunca te disse. Não por não o sentir, mas porque a correria das horas e a ideia que temos todo o tempo pela frente nos adia os momentos. E a verdade é que depois eles nunca acontecem.

Agora tenho tempo a mais. Engraçadas as teias da vida. Um tempo que não serve para nada a não ser para recordar o que foi e imaginar o que poderia ter sido.

O lado de cá é triste e solitário e eu estou muito cansada da espera.

Olho-me no espelho e não reconheço este corpo amarrotado. O olhar que me mira é vazio, é o olhar da morte que teima em chegar.

É difícil a existência sem mais nada para além dela.

Amanhã a certeza do mesmo monte.

Não sei é se me encontrará.

Por: Carla Freire

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