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Um filme odiado e adulado

Ciclo “Filmes de Culto” regressa à Mediateca VIII Centenário da Guarda com “A Sede do Mal”, de Orson Welles

“A Sede do Mal” (1959) podia sintetizar-se numa única sequência, mas é muito mais do que o magnífico “travelling” que abre o filme de Orson Welles. Não podia haver melhor escolha para assinalar o regresso do ciclo “Filme de Culto” na Mediateca VIII Centenário, na Guarda, que exibe amanhã à noite a versão integral desta obra prima do cinema negro. Um “thriller” de cortar a respiração que o realizador (e actor) aproveitou para evidenciar as suas fabulosas técnicas cinematográficas e expressar as suas ideias políticas e sociais, não se coibindo de passar pela lama o orgulho da América conservadora.

O público e a crítica responderam na mesma moeda. Considerado ultrajante por uns e arrasado pelos outros, o filme foi um fracasso de bilheteira e motivou em parte o “exílio” do realizador já que “A Sede do Mal” acabou por ser a quinta e última produção de Orson Welles nos Estados Unidos. Baseado no romance policial de Whit Masterson, o guião aborda temas controversos como o racismo, a ambiguidade sexual, a droga, a corrupção policial e do poder, escolhendo para herói da história um inspector mexicano (Charlton Heston) que tem pela frente um manhoso polícia americano (Orson Welles). Uma rivalidade que se desenrola numa sórdida cidade fronteiriça onde o carácter e a moralidade humana valem muito pouco, como irá descobrir às suas custas o primeiro. Welles é o polícia racista, figura grotesca e poderosa que governa aquele pedaço de fronteira à sua maneira. Imagem que contrasta com o idealismo e a boa aparência de Heston, que está a tentar prender o líder de uma perigosa família de traficantes de droga. Por isso “A Sede do Mal” é um exame do lado negro da sociedade, revelando uma luta entre o bem e o mal, mas sobretudo a queda trágica de um homem orgulhoso.

Brilhantemente filmado, esse mundo sórdido e pervertido sobressai na tela graças ao recurso ao preto e branco e à originalidade dos planos. Por isso esta obra prima é considerada a mais expressionista e barroca de toda a filmografia do realizador de “Citizen Kane” (1941), outro libelo acusador contra a sociedade americana, e é tida como uma antecipação de “Psycho”, de Hitchcock (1960). Uma qualidade que os estúdios Universal não souberam apreciar, uma vez que a versão inicial do filme foi amplamente adulterada. Mas a Mediateca vai poupar os espectadores ao apresentar uma reedição de 1998 conforme o original do realizador. A nova versão – a quarta – inclui 50 alterações (dura 111 minutos), a mais importante das quais diz respeito à lendária cena inicial. Trata-se de um plano sequência ininterrupto de três minutos que apresenta quatro cenas diferentes. Um “close-up” revela umas mãos que preparam um engenho explosivo, segue-se um plano de uma figura que corre e coloca a bomba relógio num carro estacionado. A câmara afasta-se então e abre o plano permitindo identificar o cenário envolvente de onde emerge um insuspeitável e saudável americano (o “boss” da localidade) que entra no automóvel acompanhado da sua namorada. A viatura arranca pelas ruas em direcção à fronteira, um movimento seguido pela câmara através da noite escura. É sem dúvida um plano audacioso e brilhante que viaja algumas centenas de metros enquanto esperamos pelo fim do “tic-tac” e a explosão anunciada.

Luis Martins

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