A Cogula é uma freguesia e lugar do concelho de Trancoso onde restam vestígios de diversas culturas e povos que sucessivamente aí habitaram, nos quais se inclui a presença de judeus. Sendo toda a região marcada pela presença de sefarditas no final da Idade Média, circunstância atestada de forma inequívoca na vizinha sede de concelho, através de diversos documentos e evidências arqueológicas e arquitectónicas; também na Cogula, pela mesma lógica, aí deve ter existido uma comunidade judaica, a qual revelava os seus símbolos de identidade próprios.
Um dos “monumentos” desta presença na Cogula é uma habitação humilde, de características populares, localizada no Largo da Igreja Paroquial de São Miguel, compondo-se de dois pisos (rés-do-chão e meia-cave), remontando provavelmente ao século XV (considerando o tipo de construção e de aparelho das cantarias). Uma das características do imóvel é o facto de, na ombreira de cantaria da porta principal, do lado direito, serem visíveis dois elementos simbólicos, que outras casas também apresentam mas de forma não tão evidente. Um dos elementos é uma pequena ranhura vertical, designada pela palavra hebraica “mezuzá” (a qual quer dizer literalmente “umbral”), destinada a receber um pequeno rolo de pergaminho (o “klaf”), hoje desaparecido, o qual deveria conter a inscrição de duas passagens bíblicas ou orações (a “Shemá” e a “Vehaiá”), manuscritas em pergaminho e redigidas por um escriba especializado (provavelmente um membro da Sinagoga de Trancoso).
Esta ranhura, com cerca de 5 centímetros, dispõe-se na vertical e, por esse motivo, inscreve-se nas tradições sefarditas (judeus ibéricos), distinguindo-se de outras comunidades onde se costuma apresentar uma posição oblíqua. Está, contudo, como manda a regra, afixada no umbral direito da porta principal, obedecendo ao seguinte mandamento da Torá: «Escrevê-las-ás nos umbrais de tua casa, e em teus portões» (Deuteronómio VI: 9, XI: 20). Este “amuleto” de protecção da casa, de algum modo representa o respeito e o sentimento de sacralidade que os judeus sentiam pelo lar. As orações aí inscritas proclamavam a unicidade de Deus (oração de Shemá) e a expressão da garantia divina de que a observância dos preceitos da prática judaica seriam recompensados com a protecção à habitação, às pessoas e animais que aí vivessem (Vehaiá). A mezuzá era colocada à entrada das habitações, locais de trabalho, portões das propriedades, etc., afixada no terço superior do batente direito, na parte externa do umbral (nunca por detrás da porta), sendo costume colocar a mão direita sobre ela ou beijá-la ao entrar e sair de casa.
Ainda na mesma ombreira da porta existe outro elemento importante, a gravação estilizada de um Calvário, que de algum modo tem a mesma função de proteger a habitação, mas revela também um sentido histórico mais profundo. Recordamos que em 1480 constitui-se a Inquisição em Espanha e estabeleceu-se uma política de perseguição às comunidades não cristãs, obrigando a muitos sefarditas a refugiarem-se em Portugal. Contudo, no reinado de D. Manuel I, desenvolveram-se outras formas de perseguição e de coação aos judeus, com especial incidência a partir da instalação do Santo Ofício (1536) no reinado de D. João III, pelo que muitos se viram forçados à conversão. Estes conversos, conhecidos como “cristãos-novos” e estigmatizados pela sua ascendência hebraica, tiveram uma forte necessidade de manifestar símbolos da sua nova religião, geralmente só professada formalmente fora de portas, mas mantendo um judaísmo encriptado, como aquele que subsistiu até aos nossos dias em Belmonte. Uma das formas de manifestar esta “adesão” ao cristianismo foi exacerbar o sentimento religioso e, dado que muitas famílias continuaram a habitar as suas casas de origem, ao lado da desusada “mezuzá” foram inscritos elementos simbólico do cristianismo, a par de outras simbologias mais ou menos supersticiosas, como o signo de Salomão.
Atendendo à singularidade deste vestígio no contexto urbano, já que a sua localização é fronteira a um dos edifícios mais emblemáticos da localidade (a Igreja de São Miguel), dado ainda a notabilidade patrimonial e histórica que este testemunho representa para a Cogula, bem como o facto deste imóvel se encontrar sem adulterações de maior, seria muito importante a sua preservação e a promoção de um merecido e criterioso restauro, eventualmente, destinando-o a um apoio de natureza turística e cultural que, futuramente, se possa promover na localidade.
Sérgio Gorjão, Cogula