A descentralização de serviços parece não ser só um assunto que percorre os corredores de S. Bento. O Tribunal da Covilhã pô-la em prática esta semana ao julgar um caso com mais de 80 testemunhas ao “ar livre” na margem direita do rio Zêzere, no lugar do Areeiro, na freguesia do Ourondo. Um julgamento inédito na região e, no mínimo, surreal, em que o ambiente criado à sua volta mais parecia uma peça de teatro de Gil Vicente. Em causa está uma acção cível interposta pelo alegado proprietário de um caminho de terra batida contra as Juntas de Freguesia de Silvares (Fundão) e do Ourondo (Covilhã), que acusa de utilizarem indevidamente a pequena via reclamando 105 mil euros de indemnização mais 15 mil por danos morais. As autarquias contestam esta posição e garantem que o caminho é público «há mais de 100 anos» e tem sido utilizado por populares ou pela Beralt Tin & Wolfram.
O caso dura há sete anos, após o proprietário dos terrenos ter accionado uma queixa contra as duas Juntas de Freguesia e os seus autarcas de então, Abílio Pacheco (Silvares) e Joaquim Carvalheira (Ourondo), por estarem a utilizar aquele caminho para procederem à extracção de inertes. Na altura, as duas Juntas assinaram um documento conjunto a assegurar que aquele caminho de terra batida era público e que terá suportado a aprovação pela Direcção Regional do Ambiente de três projectos de extracção de areias naquele ponto do Zêzere. O diferendo remonta a 1997, mas só na última segunda-feira começou a ser julgado, uma vez que a primeira sessão, prevista para Março passado, foi adiada dada a ausência de uma advogada. Só que o juiz do processo, Ernesto Nascimento, decidiu transferir a sala de audiência para o local da discórdia de forma a evitar que as 80 testemunhas residentes nas duas freguesias tivessem que voltar a ser transportadas desnecessariamente para o Tribunal da Covilhã em autocarros alugados. Assim, as duas Juntas tiveram que montar um coberto improvisado com andaimes e rede-sombra, mesmo junto ao Zêzere, para que o juiz pudesse apurar os factos em causa através da inquirição dos arguidos (os presidentes das Juntas), do queixoso e das 80 testemunhas. O resultado foi uma improvisada e realista sala de audiência, mas verdadeiramente escancarada para as dezenas de curiosos que acorreram ao local com cadeiras, chapéus e guarda-chuvas para assistirem confortavelmente à sessão e se protegerem do sol escaldante.
Populares indignados com argumentos do queixoso
Marcado para as 9h30 da manhã, o caso apenas começou a ser julgado às 11h25 com a audiência do antigo presidente da Junta de Silvares entre 1994-1998. Abílio Pacheco alegou «nunca ter havido imposição» na utilização daquele caminho, por ser público há mais um século. Mas Fernando Gomes, o queixoso, não é dessa opinião e exige «justiça», reclamando uma indemnização de 105 mil euros, mais 15 mil euros por danos morais. Tanto mais que o alegado proprietário assegurou ter sido indemnizado «em tempos» com 250 euros por terem atravessado os seus terrenos. Para além dos autarcas, também os populares das duas freguesias discordam dos argumentos apresentados pelo proprietário. «Em toda a minha vida existiu aquele caminho», disse, indignada, Maria da Silva Barata, de 80 anos e residente no Ourondo. «Não compreendemos o porquê desta guerra», acrescentou Maria do Rosário Carvalho, recordando que até havia no local duas pontes: «Uma de madeira para os peões e outra para ligeiros», refere. As opiniões eram semelhantes em Silvares: «Não faz sentido», desabafou Joaquim Marques, assegurando que «há mais de 100 anos que se utiliza este caminho». Outro silvarense desconfiava que Fernando Gomes «quer é o dinheiro», enquanto o pai do queixoso disse a “O Interior” que aquele caminho «só fazia sentido quando existiam as pontes. Agora já não tem que ser utilizado», tendo em conta que existe uma nova ponte há quase 20 anos para ligar as duas margens. O julgamento vai continuar depois das férias judiciais, mas já deverá decorrer no Tribunal da Covilhã.
Liliana Correia