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tábua de marés

Autor: Kazuo Ishiguro

Edição: Gradiva, 2005

Para além da aparente linearidade, ou do não menos aparente realismo deste escritor britânico de ascendência japonesa, esconde-se um romancista experimental. Não porque entendamos a sua obra como a do típico autor experimentalista, no sentido comum da palavra, mas porque ensaia novos modelos de narração para um dos seus temas fundamentais: a dor. Já em “Os Despojos do Dia” (1989) – obra que originou um filme homónimo de 1993 realizado por James Ivory – o autor colocou no centro da acção um dos cenários mais tipicamente ingleses: o romance de estratos sociais. Em “Os Inconsoláveis” (1995), propunha outra variante: o romance centro-europeu. E em “Quando éramos Órfãos” (2000) Ishiguro reuniu num só volume Poirot, Sherlock Holmes, Greene e Dickens. O resultado foi sempre o mesmo: romances de uma insuperável densidade emotiva, acompanhada de uma invejável sensação de métier, arte e inspiração, no momento da construção de um artefacto de ficção. A fórmula empregue nesta obra é a de um romance de antecipação. E se a tristeza que nos transmite o autor adquire esse contagioso lastro das experiências humanas absolutas, tal se deve a uma áurea de fantasia, de irrealidade, com que envolve os temas mais crus e incómodos. O timbre da ficção mais radical, compaginada com um tema humano de identificação imediata, é uma questão cuja resolução não é fácil. “Nunca me Deixes” emprega seres de carne e osso. Vemo-los muito próximos de nós, apesar da natureza infra-humana, irrealizável, com que estão construídos. A brevidade da existência destes personagens, a fragilidade das suas esperanças, as mentiras piedosas onde se sustentam, tornam as suas vidas ainda mais enfermas, se as compararmos com o esforço que têm que fazer para evitar saber o destino que os espera. Todo o romance decorre sobre uma miragem: há um internato, há pupilos que dão a aparência de aplicados alunos de um colégio convencional, há adolescentes que se enamoram, há instrutores. Mas cedo se tem a sensação que o próprio autor um dia assinalou com uma precisão cirúrgica: “O que mais me interessa no ser humano é a coragem daquele que se atreve a caixa secreta que todos guardamos no nosso interior, mesmo que saiba que pode aparecer algo deveras inquietante”.

Por: António Godinho

Sobre o autor

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