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Sombras

Da luz, a sombra é o segredo, o silêncio, o sono, o sarro, o sintoma. E o inconsciente. Nessa psicanálise visual, nessa óptica mental, Lourdes Castro é Freud (“Não podendo ver claro, queremos, ao menos, ver claramente o obscuro”, “Uma grande coisa pode manifestar-se em pequenos sinais”, “As recordações esquecidas não são perdidas”) e Manuel Zimbro é Jung (“A claridade não nasce do que imaginamos claro, mas daquilo que nos dá consciência do obscuro”, “Não se trata de atingir a perfeição, mas a totalidade”, “Sem emoções, é impossível transformarmos as trevas em luz e a apatia em movimento”). Ela é um Freud tornado espacial, côncavo, subtil e feminino. Ele é um Jung temporal, convexo, mineral e geológico. E o budismo zen, tão amado por aqueles de quem falamos, é uma psicanálise silenciosa, a sombra de uma luz, o ar de uma terra, o céu de um chão. Nesta sabedoria oriental, cada um é o psicanalista de si mesmo: o diálogo exterior torna-se monólogo interior. E o discurso faz-se mudez e meditação. Lacan aproximou o zen e a psicanálise. Na abertura do Seminário 1, sobre Os Escritos Técnicos de Freud, fala do saber e do agir de um mestre zen para falar da epistemologia e da prática da psicanálise.

A Viena de Lourdes Castro é a sua ilha da Madeira. Como na outra Viena, também nesta por lá andou, em tempos que se fizeram mito e memória, a imperatriz Sissi, fantasma em fuga do mundo. E lá viveu e morreu o último imperador da linhagem dos Habsburgos, Carlos I da Áustria. Neste álbum de retratos, só faltou o do rei Luís II da Baviera, primo de Sissi, seu confidente e, mais do que se imagina, seu rival. Esse infeliz e perdulário protector de Wagner (mas ainda bem que o foi) era irmão da noite e da morte. Rei louco, com a sua coroa de sonhos e o seu ceptro de sexos, fazia da sombra a sua luz, do mistério a sua claridade. Foi assim que Visconti nos deu a ver a história dele, num filme onde a única luz que existe é a da neve. Na sua Viena do Atlântico, Lourdes Castro olha a noite e o dia, escuta a terra e o mar, fazendo de um leito de flores o seu divã freudiano e do “Grande Herbário das Sombras” o seu “Simposium Terapêutico”.

A sombra existe na luz para nos lembrar que tudo, até Deus, tem o seu duplo, o seu negativo, o seu demónio. Nas muitas civilizações do mundo, as sombras perguntam pela luz e a luz pergunta pelas sombras. De Homero a Bashô, de Gilgamesh a Omar Khayyam, de Dante a Al-Mu’tamid, de Platão a Tanizaki, de “A República” ao “Elogio da Sombra”, da Caverna ao teatro Nô, as respostas dadas a estas perguntas escrevem ou rasuram o texto de cada cultura.

Entramos na exposição “A Luz da Sombra”, de Lourdes Castro e Manuel Zimbro, que está no Museu de Serralves, comissariada por João Fernandes. Entramos e somos espectadores de um grande solário de sombras, espectáculo do Ser e do Nada, do Cheio e do Vazio, do Yin e do Yang, atirado ao mundo como se lança uma rede ao mar. Olho as caixas monocromáticas de Lourdes Castro e vejo-me surpreendido. Mas essa surpresa desaparece quando reparo no modo como os objectos as possuem. Ali estão, desmaterializados, já fantasmas de si mesmos. Ao seguir o meu caminho silencioso e leve por este reino das sombras, é como se a viagem se tornasse fixa e os meus passos parassem ao andar. Vou a um tempo ido e sou um dos paradoxos de Zenão de Eleia, aquele que fala da seta imóvel que se move, a que voa estando parada.

Olho os contornos das sombras nos lençóis pendurados no seu estendal ou deitados no seu leito. Quando chego à grande sala das telas e dos plexiglas, fico no meio de um rectângulo de silhuetas e perfis – e aprendo a ver o mundo de outra maneira. Este grandioso cabinet d’amateur é um sonho acordado, feito de matéria imaterial, de invisibilidade visível, linguagem do inconsciente tornado consciente, subjectividade objectivada. Continuo a andar sobre um chão que se ausentou. Das obras que vejo, aponto duas que fazem da brancura a sua condição: a “Sombra Projectada da Minha Mãe”, plexiglas branco, e, noutro conjunto, “La Reine d’Angleterre”, linha branca bordada num tecido branco de lã. Percorro os “Álbuns de Família” e as suas assemblages conceptuais. Estou em frente do “Teatro de Sombras”. Atrás de um pano, os objectos tornam ausente a sua presença, afirmam a sua negação, escondem-se para se mostrar.

Agora, passo da imaterialidade matérica à matéria imaterial. Olho os “Torrões de Terra” de Manuel Zimbro e a sua “História Secreta da Aviação”. Olho as suas pedras marcadas por palavras e sinais. Ele sabe que os símbolos valem mais do que aquilo que simbolizam. Zimbro é o Arpad Szenes de uma Vieira da Silva sem cidades, nem gares, nem bibliotecas, a não ser a sombra disso nas pessoas. Nos dois, há o amor do que se oculta e do que se revela. Há um laço que não se desfaz. Esta exposição dupla, assim duplo é o crepúsculo na sua manhã e na sua tarde, é um dicionário de sombras. E é o mapa de um mundo no Mundo – seu alçapão, seu inconsciente, seu infinito.

Por: José Manuel dos Santos

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