“É difícil enterrar um cadáver “six feet under” (sete palmos debaixo de terra) numa cidade que está ela própria “six feet under the sea” (sete palmos abaixo do nível do mar)”.
Citação própria
Eu sei que já toda a gente deve estar farta de me ouvir falar de N.O., com tantos factos novos a acontecerem no mundo todos os dias (por exemplo, “Israel e a Palestina trocam os cadáveres de indivíduos dados como desaparecidos” _ um sossego para as famílias que assim podem chorar à vontade sobre o que reste dos seus entes queridos), mas… a cada doido a sua mania e como ainda me falta explicar duas ou três coisas importantíssimas tais como a razão de ser dos cemitérios em altura de N.O. e o motivo destas crónicas terem sido chamadas de “N.O. e o luto”, quando podiam ser “N.O. e o jazz” ou “N.O. e a ousadia de existir” ou “N.O. e os pântanos”, têm de ter paciência.
Na realidade qualquer um destes títulos seria bem aplicado porque tudo isto se inter-relaciona, bem como o meu afecto por essa cidade.
Passo a explicar.
Há sítios e pessoas que seria suposto não terem vingado. É o meu caso. Míope como sou, pela ordem natural das coisas deveria ter-me perdido na floresta e ter sido comida por um animal selvagem, não fora o facto de ter nascido no século XX e na Europa, num local em que quase já não há florestas e os predadores de quatro patas escasseiam e numa época onde os óculos e os livros abundam, de forma que rapidamente se descobre utilidade para uma criança míope e desajeitada.
Nova Orleães tem em comum comigo essa circunstância. Também não era suposto ter sobrevivido.
Está edificada sobre um pântano. As tribos índias que circulavam por esse território nunca se fixaram nele. “There were no tepees in Louisiana” (Museu do Cabildo)*.
Os primeiros europeus a aportar à região foram espanhóis que tiveram o bom-senso de ir embora.
Só a teimosia dos franceses, desejosos de criar raízes num Novo Mundo disputado por espanhóis, portugueses e ingleses, levou a que, 150 anos mais tarde, em 1699, Iberville construísse um acampamento, na margem direita do início do delta do Mississipi, onde os aluviões eram mais altos.
Os primeiros felizes colonos foram trazidos à força das prisões e casas de detenção de prostitutas em França e desembarcados no lodaçal, com água até aos joelhos, com ordens para sobreviver. Ao fim de um ano estavam dizimados pela febre amarela.
Era também aí, nessas zonas mais elevadas junto à margem, que os mortos tinham de ser sepultados. Só que todos os anos o rio transbordava e os restos mortais dos fenecidos eram arrastados para as zonas baixas, que estavam entretanto a ser drenadas e edificadas, onde moravam os vivos.
Foi para impedir a desagradável visita dos caixões semi-apodrecidos e respectivo conteúdo que os habitantes do ajuntamento populacional que em 1718, sob a regência do Duque de Orleães, se tornou numa cidade, a Nova, tiveram de encontrar soluções alternativas para a sua acomodação post mortem.
Em 1721 o engenheiro real Adrien de Pauger cria o primeiro “plano urbanístico” da cidade.
Foi nessa altura que se desenhou o quadriculado que constitui a essência do French Quarter. O cemitério foi colocado a montante e a oeste da cidade de forma a que, em caso de inundação, os caixões desaguassem na parte desabitada do pântano e não na Baixa do burgo.
No fim do século XVII, dois fogos destruem os primitivos edifícios coloniais, construídos em madeira de cipreste. Os espanhóis, a quem a administração da Louisiana tinha sido entregue, em 1763, reconstruem a cidade utilizando tijolo e estuque e, com os mesmos materiais, edificam o 1.º cemitério acima do chão, o St. Louis n.º 1.
Hoje em dia N.O. é mantida à tona de água por um complexo sistema de diques, canais e estações bombeadoras.
No dia 8 de Maio de 1995, em consequência da queda inoportuna de 26 polegadas de chuva em 6h, sofreu a última das suas grandes inundações.
O responsável pela rede de armazenamento e distribuição de águas de N.O. explicou aos munícipes: “O principal problema desta cidade é histórico. Iberville cometeu um erro quando acampou aqui.”
* “Não havia tendas índias na Louisiana”.
Por: Maria Massena