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Ser artista… não é ser mais alto, nem maior do que os homens!

Opinião – Ovo de Colombo

Há pouco tempo tive oportunidade de visitar a mais recente exposição de Hirondino Pedro (Leiria, 1964), apresentada no edifício do Banco de Portugal, em Leiria. A mostra intitulada “Casa dos Sentidos” e preparada pelo artista para aquele espaço cultural gerido pelo Município, foi concebida em diversos núcleos sob distintas evocações: “um tom para o ser”, “deus na primavera”, “born, never ask”, “histórias entre o céu e a terra” e “saudades de Epicuro”. Desde logo, as próprias designações dos espaços remetem para variados universos meta-artísticos, cruzando diferentes referências, entre as quais mitológicas, históricas, literárias ou filosóficas.

Ao longo da exposição é notório um forte cariz narrativo – favorecido pela organização espacial –, e a formulação de um imaginário pessoal que vai beber inspiração às tradições vernáculas, às memórias íntimas (de paisagens, de momentos especiais), às reflexões metafísicas e às fabulações do próprio pintor. Há portanto uma imagética peculiarmente reconhecível que o artista se empenhou em nos desvendar, e que aparece aliada a um intenso tratamento das qualidades formais e intrínsecas da pintura. Aliás, este foi um dos objetivos primários desta exibição, na senda do trabalho que Hirondino Pedro tem vindo a desenvolver enquanto dinamizador de um ateliê de artes: partilhar com o visitante o (usualmente reservado) ambiente de trabalho do artista e promover o contacto direto com os materiais e os processos criativos. Para tal, o primeiro núcleo expositivo é precisamente a recriação cenográfica de um ateliê, em constante (re)arrumação, pontuado com telas, caixilhos, pincéis… que anuncia “um tom para o ser” artista. Nos espaços seguintes, onde estão reunidas obras mais recentes, encontramos num primeiro momento pinturas que remetem para a apresentação alegórica da primavera, inevitavelmente associada à noção de fertilidade (natural e humana). Sucede-se uma sala escura e de exíguas dimensões, com uma instalação de pendor mais intimista (“born, never ask”), onde a intensidade do traço e a tonalidade carnal das obras pictóricas relembram alguns pintores ingleses do segundo pós-guerra, como Bacon ou Freud. Os dois últimos núcleos expositivos recuperam o lado mais alegórico e fabulador da obra de Hirondino Pedro, especialmente na sala “histórias entre o céu e a terra”, onde se cruzam seres monstruosos com seres celestiais alados, mundos paradisíacos com espaços dantescos e misteriosos. A encerrar a mostra, o tributo a Epicuro, recordando-nos que o objetivo último deverá ser sempre a felicidade, através da verdadeira fruição dos prazeres da vida, do pleno experienciar das sensações que nos rodeiam (tal como da arte).

E assim, mais uma vez se entoa a nota dominante que sobressai durante a mostra: uma vontade expressa por parte do artista em que o espectador se liberte dos constrangimentos fruitivos e interpretativos usuais quando se depara com obras de arte, em particular com obras de arte contemporânea, por muitos considerada hermética, complexa, elitista e, até, desinteressante. Pelo contrário, há no trabalho do artista leiriense uma assumida vocação social, e até mesmo didática, que passa também pela identificação da arte com a vida – estratégia de sabor tão modernista, ao jeito de artistas como o alemão Joseph Beuys (que chegou a afirmar “Cada homem é um artista”) ou, entre nós, Ernesto de Sousa. E nesse sentido, manifesta-se também um caminho de estetização da vida e simplificação da arte, para o qual é igualmente importante a deliberada escolha de temas e representações simbólicas, o recurso a suportes e mesmo técnicas consideradas tradicionais. O exercício pictórico de Hirondino Pedro – quer sobre tela quer sobre papel – resulta então em obras figurativas que encerram pequenas narrações, geralmente de cores saturadas, potencializadoras das propriedades dos materiais. Há pois uma qualidade de “homo faber”, na senda dos seculares modos do fazer artístico, de espírito oficinal, que se evidencia nas peças escultóricas em barro, formalmente muito orgânicas, na predominância dos pigmentos em tons da terra e da vegetação na pintura, na presença de esteiras, nos bancos em forma de troncos, no aroma a esteva… Enfim, há um senso de completude dos sentidos e de genuinidade na obra de Hirondino Pedro, no modo como o artista se nutre da terra e dos seus frutos, se comunga com a natureza, diria mesmo que transpondo para o plano da pintura o que Alberto Carneiro experimentou no domínio da escultura.

Esta conceção é essencial para nos aproximarmos da abordagem artística do artista leiriense, pois ele procura que o código de acesso a cada obra seja facilmente encontrado nas vivências de cada um de nós, evitando assim as perplexidades e desorientações que o grande público por vezes sente diante de certas obras. E aqui entroncamos num entendimento que remonta a Tomás de Aquino, desenvolvido posteriormente por Kant: a referência a um “sensus communis” como fundamento do juízo estético, e, de acordo com o filósofo alemão, a necessidade de existência de prazer respeitante ao sentimento pleno de estar em vida. Um dos mais famosos poemas de Florbela Espanca começa assim: “Ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os homens!” Na mais recente exposição de Hirondino Pedro fica bem patente que ser artista não é ser mais alto, nem ser maior. É simplesmente ser Homem. Estar conectado em plenitude à vida.

Por: Tânia Saraiva*

*Historiadora e crítica de arte. Professora universitária.

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