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“Selfies” – o eu filosófico

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“Somos nós e as nossas circunstâncias” e essa verdade, que transporto de memória, lembra-me a formatação das inocências modernas, a frenação moribunda dos limites pessoais. Aqui explico-me: 1 – Na inocência de cada um há a genética e um conjunto de envolvências que nos formatam naquilo que somos. 2 – A tendência para ocultar os limites, o relaxamento educativo, a demolição de regras para os comportamentos desviantes, introduziu condutas cada dia mais desintegradas. 3 – A vaidade sem fronteira, a exposição do eu sem cautelas, a construção de um ego grotesco no espaço público levou ao exercício despudorado da foto de si mesmo em autocarros, comboios, metros. Hoje vendem-se extensões do braço para permitir mais “selfies”, melhores imagens do eu desconstruído da realidade. A realidade é um ego cego do real, vivido transparente como se os olhares do outro não estivessem lá. Eu no meio da miséria. Eu rodeado do por do Sol. Eu na carruagem do 7. Eu a pagar um bilhete de avião. A presença deste ego destruidor da relação pública, do conforto social, é uma masturbação de facto, pois é um encanto do prazer com o corpo do indivíduo, ele mesmo. Assim, a “selfie” é um pilar da nova realidade – é a prova de que corremos de modo dramático para a mais mínima das minorias, a do ego vendável nas suas idiossincrasias. O ego que se expõe e canta, o eu que se projeta em loucos exercícios, o corpo filmando-se de modo radical conduz à última das “selfies” – a exposição do próprio fim. Também permite que o produto eu seja vendável nas formas íntimas. As circunstâncias que construíram esta realidade são talvez a causa última do fim arrepiante dos eus. Este é o eu de um corpo desprovido de conteúdos, um corpo que se mostra para provocar inveja ou construir memórias. A importância da essência do conhecimento está fora desta imagem curta, simples, absolutamente momentânea. Não se imprime, não se guarda, desfaz-se no imaginário ou na realidade quimérica de milhões de “selfies” e só por essa razão é também quase inofensiva. O ego exposto é o zero de uma nova realidade, que cresce ali mesma. Antes havia nada. Agora é o ego e a sua exposição. Quantos mais egos colocarem na rede imagens do eu, menos importância tem cada ego e depois vem a força da diferença que projetará aquela imagem para a glória da contagem dos visualizados. É uma competição mortal e cheia da corrosão da excentricidade sem baliza. Atentem a esta nova realidade que ela influencia a abstenção eleitoral, transporta autismo à coisa pública, carrega isolamento pungente, aliena a participação.

Por: Diogo Cabrita

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