Antes de mais cabe aqui referir que o termo “saúdismo” é uma tradução livre e à letra do termo britânico “healthism”, que significa mais ou menos a mania da saúde e corresponde a uma tendência manifestada tanto por cidadãos comuns como por profissionais de saúde, e principalmente médicos, para exagerarem nas expectativas em relação aos problemas de saúde. Não se trata de um fenómeno generalizado mas é, contudo, suficientemente significativo para merecer uma reflexão.
Por um lado, a mediatização sob todas as formas dos problemas de saúde, muitas vezes em tom alarmista, hipervalorizando a morbilidade e criando na sociedade um sentimento de insegurança e vulnerabilidade. Hoje em dia não há jornal de paróquia ou estação (apeadeiro) de rádio local que não inclua nos seus conteúdos informações ou conselhos sobre saúde, o que até seria uma excelente ideia não fosse o caso de normalmente serem acentuados em demasia, e a meu ver, os aspectos negativos da questão com as decorrentes “proibições” (não coma isto, não beba aquilo, não apanhe sol, não ande à chuva, não “stresse”, não…) e apelando à procura de cuidados médicos ao primeiro espirro ou dor de barriga ou, mais sofisticadamente, a fazer de vez em quando um “chécape” a tudo para ver se está tudo bem, como se a avaliação do potencial de saúde/doença de alguém num determinado momento tenha alguma semelhança com a revisão de um motor de automóvel. Está bem que dantes não se sabia o que sabe hoje, mas, caramba, o colesterol (o mau) não é nenhuma coisa horrorosa e mortal que tenha que se andar a medir a toda a hora, a tensão arterial normal não é igual para toda a gente (enfim, há limites…) nem todos os dias para a mesma pessoa, um copo (ou dois) de tintol a empurrar a bucha pode ser (e normalmente é) excelente e recomendável para muitos, mas prejudicial para outros, fazer exercício é bom, mas também pode matar (lembro, por exemplo, o caso de um amigo meu de Coimbra que há tempos, e após 25 anos de tabaco, cervejolas e sedentarismo, resolveu começar a fazer umas corridas no Choupal tendo sido acometido por um enfarte nos primeiros minutos e falecido a caminho do hospital), e por aí fora.
Por outro lado, e no que diz respeito aos médicos, principalmente a nível de cuidados primários de saúde (Medicina Geral e Familiar), há a meu ver igualmente um certo exagero na “oferta” de cuidados ditos preventivos (com sobreutilização de recurso a exames complementares de diagnóstico), seja devido a uma atitude defensiva, a comodismo ou simplesmente ao desconhecimento do verdadeiro valor (valor preditivo, para os entendidos) de um determinado exame num determinado momento para uma determinada faixa etária. Se calhar estou a exagerar um pouco tendo em conta e generalizando a minha própria prática e alguns “abusos” que em mim próprio detecto, mas é a impressão que tenho. Também é verdade que estamos (os médicos) continuamente a trabalhar sob três fogos: a pressão dos utentes/pacientes segundo a sua própria percepção de mais, melhores e mais rápidos cuidados; das entidades político-administrativas que, em última análise, avaliam a eficácia e custos do sistema e anseiam por manter os lugares; e da nossa própria consciência e seja o que for que façamos dificilmente agradamos aos três. Há também, creio eu, uma tendência exagerada para “medicalizar” as pessoas prescrevendo muitas vezes em função do sintoma e não (ou não só) do problema de saúde, o que leva, por um lado, a estigmatizar a pessoa como doente quando de facto, se calhar, não o é e, por outro, a um consumo exagerado de fármacos por parte dos utentes/pacientes com os perigos de iatrogenia (efeitos nocivos dos medicamentos) que daí decorrem. Confesso a minha estupefacção e desilusão quando vejo alguém nos serviços de saúde com o saco de plástico a transbordar de medicamentos, e tão ou mais doente que os outros. Mas alguém conhece, por acaso, algum estudo científico que tenha investigado a sobreposição de mais que três ou quatro fármacos?
Obviamente que não há fórmulas de funcionamento nem para os utentes nem para os médicos, mas cabe a estes a maior quota de responsabilidade na mudança para uma “Saúde” menos dramática e mais humana, devendo privilegiar os contactos caso a caso para educar nesse sentido. Nem sempre é fácil e a paciência nem sempre abunda…
Por: Vasco Queiroz