De bibe ainda a cheirar a novo, após uma mulher de bata azul me ter raptado a boneca, vi-me no meio de uma sala, cheia de mesas e cadeiras, adequadas ao meu tamanho, ladeada por jogos, livros e lápis de cor, fechados atrás dos vidros de enormes armários castanhos. Duas semanas passadas, depois de os ter experimentado todos e fartinha de sestas, já só ansiava pelos fins de semana. A ansiedade chegou a tal ponto que as minhas caras de segunda-feira tornaram evidente a necessidade de alguém me acudir. Deve ter sido assim que, às segundas-feiras, a mulher da bata azul deixou de me raptar a boneca e passou a entregar-nos à mulher do fato cinzento. Depois, de mão dada umas às outras, seguíamos para um Volkswagen ao encontro do sr. Doutor que, achava eu, era o homem do “se bem me lembro” da televisão. Muito mal sentada, para os padrões de segurança rodoviária atuais, no meio do banco de trás do “carocha”, puxava a cabeça para a frente e, por entre as cabeças do médico e da freira, tratava de apreciar essas viagens semanais até à Cerdeira do Côa e/ou Rochoso. Claro que por esta minha incumbência – que muito mais tarde identifiquei como “pau de cabeleira” – tinha depois direito a almoçar, em exclusivo, bife com batatas fritas e ovo estrelado.
Mais tarde já na primária, alguém que me era muito próximo vestiu também um fato cinzento e mais outras duas ou três outras, viajou de Volkswagen por quintas e aldeias. À semelhança do médico e da freira dos meus tempos de infantário, levavam material médico, de enfermagem, conselhos de higiene e saúde, vacinação, para mães e crianças sem outro acesso a estes cuidados básicos de saúde. A distingui-los tinham o serem profissionais de saúde afetas ao Instituto Materno Infantil, entretanto criado no âmbito da reforma na saúde implementada por Marcelo Caetano, contagiado por uma Europa que, talvez por pressão do auge da Guerra Fria, tendia a substituir o modelo assistencialista pelo do Estado Providência. Assim, em 1973, havia em Portugal 300 centros de saúde onde, a par dos cuidados médicos básicos, era promovida a saúde e prevenida a doença. Objetivos posteriormente consolidados com a criação do SNS.
Tomando por legítimo dizer que vivi, na primeira pessoa, a implementação destas políticas de saúde que, entre outras inovações, criam os Centros de Saúde que se organizam em atividades de vacinação, saúde ambiental, saúde materno-infantil, saúde escolar, medicina do trabalho… Não posso deixar de ficar perplexa quando alguém, alegando crenças irracionais e não comprovadas, se arroga o direito a não se vacinar e a não vacinar os próprios filhos, a desprezar aquele que já foi considerado um dos melhores sistemas de saúde. Sistema de saúde que, mesmo com mesmo com muito menos recursos e condições foi capaz de reduzir, drástica e sustentadamente, o índice de mortalidade infantil e a ocorrência de doenças infectocontagiosas. Mais perplexa fico ainda ao ver emergir, do meio destes arrogantes, alguns profissionais da área. E, por muito que me esforce, não consigo imaginar que afronta não representarão para aquelas que, de fato cinzento num Volkswagen Carocha, um dia percorreram os sítios mais recônditos deste país para, além de outros cuidados, levar a todas as crianças vacinas contra doenças cuja fatalidade é evitável. Caso para perguntar: como foi possível, transformar tão brilhante cinzento, nestas inconcebíveis e retrógradas cores?
Por: Fidélia Pissarra