Saramago era (e é) para muitos “aquele tipo que escreve sem vírgulas”. Ou então sem pontos finais, ou sem vírgulas e sem pontos finais. Não sou especialmente fã dele, mas não pela forma como pontuava. Gostei de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de “Levantado do Chão” e de “Ensaio sobre a Cegueira”. Nenhum deles é um dos livros da minha vida e confesso que deixei ficar a meio, entre outros, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo e, sacrilégio, “Memorial do Convento”. É a este que recorro para demonstrar que as ideias feitas têm entre nós uma cotação muito superior à da verdade:
“D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça. Além disso, quem se extenua a implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha, e também por duas razões. A primeira razão é que um rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há-de ser naturalmente suplicante, tanto em novenas organizadas como em orações ocasionais.”
Poderia apresentar muitos outros trechos, que a escrita seria equivalente. Quem duvida que experimente, e que conte vírgulas e pontos finais, que terá muito que fazer. Aproveitará também para ler alguma muito boa literatura e ganhará com isso pelo menos a perda de um preconceito. Caberia aqui perguntar como nasceu este mito e porque não morre. Seria muito fácil a quem leu elucidar quem o não fez, ou não faz com medo de não conseguir ultrapassar o obstáculo da pontuação, mas nem isso acontece. É como se ninguém o tivesse lido: nem os que gostaram, nem os que detestaram.
Por: António Ferreira