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Jogo de Sembras

1. Há alturas em que não é possível nem desejável ter contemplações. O encerramento da maternidade do Hospital da Guarda é um desses casos. Estamos diante de uma indecente mistificação em que se pretende fazer crer aos incautos que o problema é isolado, transitório e sem efeitos transversais. Mas a verdade é que se trata de um delito. Aliás, vários: incompetência, gestão danosa, ignorância, cobardia e má-fé. Agora já é oficial: não se fazem partos no Hospital Sousa Martins; não se atendem parturientes com mais de 21 semanas de gestação (grávidas de cinco meses, portanto); as urgências desta especialidade serão desviadas para outros hospitais; e se o da Covilhã não tiver meios, serão sumariamente transferidas para Coimbra. O conselho de administração afixou furtivamente uma nota, no Dia da Mulher, em que remete apenas para a impossibilidade de «reunir as condições exigidas à qualidade e segurança da boa prática clínica». O que significa isto? Significa que com a mais recente razia no serviço de Pediatria não há especialistas em número suficiente que permaneçam na urgência e no internamento e, em simultâneo, assegurem a presença obrigatória nas equipas da maternidade. A opção tomada foi uma malfeitoria: em vez de se privilegiar uma unidade de referência, susteve-se um serviço faz-de-conta. A maternidade da Guarda tem prestígio, tem meios, tem médicos qualificados e enfermeiros em número suficiente, desenvolve técnicas inovadoras – há anos que pratica o parto sem dor – e regista o maior índice de nascimentos entre os hospitais da região. A urgência pediátrica simplesmente nunca existiu: é na prática uma unidade de atendimento de saúde infantil, assegurada quase só por clínicos gerais, semelhante ao serviço de atendimento permanente que os médicos do Centro de Saúde ali mantiveram durante anos. A diferença é que anda por lá um pediatra, o único, a dizer que manda. Se fizesse serviço à maternidade, apenas obedecia. Na contagem das crianças atendidas, o hospital exulta com números assombrosos. Mas quantas foram, realmente, observadas por um pediatra? E quantas entraram, efectivamente, em condição de urgência? Quem dirige o hospital sabe que esta decomposição estatística é possível de fazer e facilmente resumirá à redundância a mais propalada das conquistas. Tanto que sabe que no dia em que a maternidade fechou consentiu um número anormal de internamentos em pediatria. Qualquer criança atendida na urgência teve ordem de permanência, por tudo e por nada, nem que fosse por escassas horas. Eis uma estratégia de esperteza saloia destinada a passar a ideia de actividade, de necessidade, de opção sensata. É com expedientes deste género que o hospital tenta legitimar uma decisão medrosa e perversa. Para não dar o braço a torcer no fracasso da Pediatria, mantém este serviço como um corpo vegetativo, quando esta é a valência em que mais logicamente podíamos depender da Covilhã, se existisse uma política de complementaridade de recursos que valorizasse à escala regional os melhores serviços de cada unidade. E assim ficam nove médicos obstetras, dois anestesistas, dez enfermeiras com especialidade em obstetrícia, duas com especialidade em neonatologia e onze enfermeiros gerais a olhar para as paredes. É esta equipa de 34 pessoas – que tem realizado uma média anual de 1200 partos – que está de braços cruzados desde o início da semana, só porque um pediatra do quadro e mais dois de apoio foram barricados numa coisa que não existe e impedidos de assistir nascimentos. Nem o facto de a maternidade da Guarda figurar no estudo de Albino Aroso para o Ministério da Saúde levou a direcção do hospital a assumir uma atitude reivindicativa. Estando as três unidades do mesmo eixo – Guarda, Covilhã e Castelo Branco – no grupo das «condenadas», é óbvio que pelo menos uma teria que permanecer aberta para servir toda a região. A escolha da Guarda seria pacífica, pelas condições como pelos resultados. Mas estes indigentes amoucos trataram de oferecer antecipadamente o «prémio» à Covilhã, que mal consegue despachar os 600 nascimentos anuais. E tem o Hospital Sousa Martins novas salas de partos e um bloco operatório de obstetrícia pronto a inaugurar – para nada. Por bastante menos toda a administração do hospital de Viseu foi há dias demitida. Não é possível que o Ministério da Saúde continue cúmplice do delito. Esta gente pôs tudo em causa: o futuro do hospital e o destino da cidade. A continuada existência nos lugares degrada o conceito de bom-senso e polui a nossa auto-estima.

2. O líder do Movimento pela Criança é que tinha razão: «são responsáveis que recebem ordenados pagos por todos os contribuintes, é preciso perguntar-lhes o que é que fizeram nos últimos dois anos». Referia-se à administração do Hospital Sousa Martins, a quem exigia satisfações, em vigílias e marchas lentas, já pressagiando o pior dos cenários: «qualquer dia não haverá nascimentos na Guarda». Porque a falta de pediatras podia também «debilitar a Obstetrícia». Isto disse-o há três anos, com outra gente no poder. Hoje declara diametralmente o inverso: «o movimento surgiu para lutar pela urgência pediátrica e pela pediatria, que estão a funcionar» e o problema da maternidade foge «do âmbito das reivindicações que o movimento fez». Aliás, a situação está «indiscutivelmente muito melhor». Falou assim no final de um encontro com o actual conselho de administração, na semana passada, depois de ter sido chamado para servir de veículo de desafrontas: que o problema não é do hospital mas «da exigência da Ordem dos Médicos em impor em permanência um médico pediatra», pelo que até «apelamos aos obstetras do hospital para que aceitem trabalhar com pediatras em regime de prevenção», porque a outra regra «é muito difícil de cumprir na Guarda». Eis um moço de fretes na plenitude da função. Eis o desafortunado líder de um grupúsculo de usurpadores da boa fé alheia, em busca da promoção pessoal e na ansiedade de migalhas de poder. Eis quem ainda teve o desplante de declarar – não fossem mentes perversas tergiversar – que o movimento «é autónomo, age de acordo com princípios e não anda a reboque de ninguém». Já nem se pedia honestidade moral. Mas esperava-se, ao menos, alguma vergonha.

Por: Rui Isidro

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