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Reflexões orçamentais

Hic et Nunc

De semblante carregado, lápis atrás da orelha, olhando fixamente o papel de gramagem esquisita, onde no meio de somas, subtrações e equações simples, o merceeiro vai maquinando intenções num discurso muito próximo ao designado, ecuménico de púlpito, recheado de palavras e palavrões de um vocabulário comercial, sendo apenas visíveis exercícios aritméticos destinados aqueles que ele efetivamente não gosta. O conhecimento científico do “nosso” homem baseia-se, única e exclusivamente, no deve e haver. De um lado a receita, do outro a despesa, não esquecendo a dívida. O conceito é 100% mercantilista e na sua mesquinhez economicista pouco lhe importa que fiquem de fora a saúde, o ensino, a segurança social, o trabalho, a reforma ou a habitação, essa que está mesmo louco por taxar. O espaço filosófico é permanentemente marcado pelo rasgado pensamento, que segue à risca, todos diferentes todos iguais – mas… uns mais iguais que outros… Neste livro de registo do numerário e por esta lógica de tabelião/escrivão/contabilista, estão permanentemente presentes dois tipos de destinatários: os que pagam as favas com língua de sete palmos e os outros… sim, os outros, os das benesses, dos cargos, dos chorudos vencimentos, percebendo-se que dos cerca de 10 milhões de naturais do cantinho-à-beira-mar-plantado, 2 milhões não pagam impostos porque são efetivamente pobres, outros 2 milhões também não, porque vivem abaixo ou próximo do salário mínimo e mais 2 milhões de reformados com reformas mínimas e cada vez mais mínimas. Restam apenas 4 milhões… repartidos por desempregados, ricos, novos-ricos, pobres e novos pobres, estes últimos a engrossarem de dia para dia as estatísticas de uma classe média já completamente desfeita pelo poder instituído. É por isso que continuo sem perceber esse semblante carregado, esse ar melodramático e esse discurso com dose de hipocrisia que baste, apelidando este povo como o melhor do mundo, mas pactuando de forma visível com os grandes… com os mesmos de sempre.

Ton Wilthagen criou a ideia que o mundo do trabalho está cada vez mais instável devido à globalização porque esta conduz a uma forte concorrência internacional. Assim sendo, o mote foi dado e a partir daqui o mundo capitalista encarregou-se de fazer o resto. Desregulou os mercados e a crise instalou-se. Os governos tentam justificar, através da lei do orçamento, medidas restritivas a fim de estancar a crise, reduzir o défice orçamental, realizando, para tanto, truques e habilidades da chamada engenharia financeira em operações de cosmética, sem a realização das verdadeiras reformas de fundo, divertindo-se em cimeiras e encontros europeus com o permanente objetivo de salvar a todo o custo o capitalismo decadente. Neste verdadeiro insulto a quem (ainda) trabalha o (des)governo resolveu atingir todos, sem exceção, num terrorismo baixo e ordinário, no maior ataque algum dia feito à classe média, especialmente àqueles em que ditatorialmente manda. Para se perceber a demagogia, socorro-me das publicações da União Europeia (de que tanto gostam de falar) “L’Emploi en Europe”, onde se pode ver que a média europeia de emprego no Estado é de 25%, enquanto por cá não chega aos 18%. A mais baixa, com exceção de Espanha. Olhando para o departamento oficial de estatística da UE, vemos que a despesa com salários e benefícios sociais em Portugal é inferior a todos os países da zona euro. O “nosso” homem bem pode argumentar, mas só por cinismo, má fé ou hipocrisia social, a mentira pode ganhar alguma dimensão.

O pai da administração moderna e arauto das privatizações, Peter Drucker, diz-nos que a gestão tem de «determinar resultados positivos nas racionalidades políticas e burocráticas», existindo objetivos e metas a alcançar, passando por propostas materiais onde encaixam competências próprias, aspetos estratégicos e instrumentais, devendo todo o esquema ser orientado na vertente de eficácia e da eficiência, afirmando por outro lado a abertura aos mercados e a procura de crédito.

Governar um país é como governar a nossa própria casa. Assim sendo, tomemos o exemplo de um empréstimo de longa duração à banca a ser pago em mensalidades. Com a crise instalada, verifica-se que a prestação tornou-se incomportável. A primeira coisa que qualquer cidadão sensato fará é ir ter com o gerente da conta e propor-lhe duas coisas: uma, alargar o prazo de pagamento, o que fará baixar a prestação. A outra negociar o “spreed” baixando significativamente a taxa de esforço. Imaginemos então que o banco não aceita nem uma coisa nem outra. O cliente dirá, pura e simplesmente, que transfere a dívida para outra instituição bancária, com a qual, e antes de ter ido ao “seu” banco de origem, já tinha negociado, aplicando a máxima “quem mais dá mais amigo é”. Com o Estado passa-se o mesmo. Independentemente de compromissos com a UE e o Banco Central Europeu, todos os países do sul da Europa, de forma estratégica e numa coordenada demonstração de força, podem perfeitamente procurar outras instituições de crédito, noutras paragens e ameaçarem abandonar a zona Euro… Veremos então como reagem alguns países europeus, que irão propor de imediato e com toda a certeza, tornar o empréstimo muito mais apetecível, pois se não o fizeram, põem em causa a sua própria economia. (A ida da Merkel à Grécia não é inocente e é uma clara demonstração daquilo que se acaba de dizer). Ah pois… Como diz o povo, “para grandes males, grandes remédios”. E quero lá saber se a “nossa” moeda se chama escudo, yuan, iene, peso, rublo, kwanza ou metical. O que não quero seguramente é a moeda da “troika”. Essa, definitivamente, não…

Por: Albino Bárbara

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