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Recordar o Seminário aos 100 anos

Tresler

Quando pensamos no tempo da nossa juventude passa-nos pela cabeça uma nostalgia inexplicável mesmo quando esses tempos não foram os melhores que podíamos ter augurado. Do mesmo modo, o palato divide-se entre um sabor a chá de tília e um amargo de boca de não se sabe o quê. A tília, relembro-o agora, ao ver o livro do centenário do Seminário do Fundão, vem-me de um sabor novo que os meus lábios de dez anos nunca tinham tocado até essa idade e que a partir da minha entrada no Seminário se tornou rotina à hora do lanche.

Quando se entrava no Seminário do Fundão nos anos 60 do século passado tudo era novo e surpreendente para a maior parte dos jovens, quase todos das aldeias rurais da Beira Alta e Beira Baixa que compunham a diocese da Guarda. Grandes camaratas, imensos corredores, uma quinta com culturas agrícolas e animais de criação, a mata à volta a criar mistério e onde jogávamos aos “cowboys”, moda do tempo. Depois havia hábitos estranhos e clandestinidades que iam nascendo: o “contrabando” (comestíveis que vinham de casa), as idas de alguns mais afoitos à mercearia das Donas, as pequenas praxes que os mais velhos sem grande alarde iam aplicando aos pequenos, a dissimulação de livros proibidos (BD) entre os livros de estudo, o irmos sondar o gabinete do Padre Américo que fumava no seu gabinete.

Os preceitos mais estranhos do Regulamento eram mesmo o controle, por parte dos prefeitos, das “mãos por fora da roupa” ao deitar, a recomendação de andarmos em grupos de pelo menos 3 e o funcionamento do correio aberto sem possibilidade de um aluno mais dorido se queixar deste ou daquele aspeto do funcionamento da casa ou alvitrar a hipótese de sair do seminário. Éramos garotos de 10 a 15 anos e acho que só valorizámos negativamente essa atuação alguns anos depois quando, já longe dali, olhámos para trás e não avistámos a casa por detrás dos muros. As expulsões e as fugas eram casos de frequência regular mas que em geral não eram discutíveis. Quase nunca percebíamos o que tinha acontecido.

No entanto, de modo geral não guardo má impressão daqueles sítios e daquela “casa”, onde já voltei, curioso, compreendendo agora que nada podia ser muito diferente daquilo que era. Hoje encontramo-la fechada e trancada, os primeiros indícios de ruína a aparecer. Ao ler hoje o livro do Centenário, livro de celebração e onde não se esperam críticas virulentas à instituição, verifico um certo pudor em “chamar os bois pelos nomes”. Curioso que é mesmo o organizador e coordenador da edição Manuel Pereira de Matos que aponta certeiro, pedindo primeiro desculpa aos atingidos, os pecados da instituição. E aponta: a composição sem grande critério e sem preparação das equipas formativas, ou seja dos prefeitos e professores, muitas vezes à base de padres recém-ordenados; o exagerado isolamento dos jovens numa idade sensível e no sentido de um “masculinismo” supervigiado; a excessiva falta de compreensão pelas falhas dos adolescentes, consumada primeiro nas não-admissões e depois nas expulsões e fugas.

Éramos todos nós uma espécie de Antónios Borralhos da “Manhã Submersa”? Claro que não. Mas entre aquelas 4 paredes aquela figura de medo, solidão, inquietação e perplexidade perpassou sem dúvida pelo menos algumas vezes nas nossas cabeças de adolescentes, mesmo sem termos lido a obra. Curioso que vários colaboradores da obra do Centenário se debruçam sobre a obra de Vergílio Ferreira (VF) quase sempre com um tom defensivo e considerando-a um olhar lateral e inoculado de ódio antirreligioso. E no entanto acabam nas entrelinhas por reconhecer aquilo que não teriam a coragem de dizer antes de VF: o alinhamento perfeito dos seminários e da Igreja em geral com uma mentalidade de fechamento ao mundo que o regime salazarista cultivava na sociedade e nas instituições de educação.

Má era a falta de integração social que o regime de internato provocava, para além do conhecimento-zero do que era a sociedade da época, em troca da centração exclusiva na oração como orientação para Deus. Do Seminário guardo entretanto, para além da camaradagem dos colegas, experiências de radicalidade que hoje valorizo. É o caso da experiência dos retiros espirituais, que, na sua estranheza, não deixa hoje de me interrogar como tempo do silêncio absoluto. Não nego também que de maneira geral os alunos ficavam bem preparados do ponto de vista dos currículos. Já os castigos que eram aplicados aos jovens eram tão surrealistas como as parcas razões de castigo e tão típicos como o figurino da época. Um exemplo: por não nos concentrarmos no estudo, três vezes no espaço de uma hora, cerca de 40 alunos de 12 anos foram consecutivamente castigados de três sessões de cinema. Nos dias seguintes a assistência às sessões foi resgatada para quem se sujeitasse a levar uma série de reguadas. Eu fui mas houve muitos colegas que não se sujeitaram.

Fui agora ver a lista dos meus colegas, que aparece no final do livro. Que saudades! E quanta gente da minha aldeia começou os estudos no seminário! O que teria sido a nossa sorte sem esta instituição!? Muitos de nós não teriam mesmo prosseguido estudos.

(1915/16- 2015/16, “Centenário – Seminário do Fundão”, coordenação de Manuel Pereira de Matos; “Manhã Submersa”, de Vergílio Ferreira, 1953)

Por: Joaquim Igreja

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