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Recordar Abril através da música

António Duarte era militar quando se deu o 25 de Abril, mas foi sobretudo um cantor da liberdade no Grupo de Ação Cultural (GAC) “Vozes na Luta”

Desde o primeiro momento que a música assumiu um papel importante na história do 25 de Abril. “E depois do Adeus”, cantada por Paulo de Carvalho, e “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso, ficaram conhecidas como as “senhas” que deram início à Revolução dos Cravos, mas estes foram tempos de muitas mais músicas de intervenção. Antes e mesmo no pós 25 de Abril de 1974, as canções assumiam um papel de luta e a liberdade teve muitos intérpretes.

Foi assim que António Duarte viveu este período da história de Portugal, através da música. Na época com apenas 23 anos, este covilhanense era militar em Lisboa, na Escola Prática de Transmissões, mas a sua história vai mais além. «Fiz questão de conhecer os homens das baladas», começou por contar. Primeiro Fausto, depois Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco e tantos outros. Todos juntos fundaram no final do verão de 1974 o Grupo de Ação Cultural (GAC) “Vozes na Luta”, que «corria o país, mais a zona Centro e Sul, para cantarmos músicas de intervenção». Tempos que lhe trazem «recordações fantásticas» de um «trabalho muito gratificante», recorda sem esconder a nostalgia: «Reuníamo-nos por um bem comum, tínhamos como objectivo melhores condições de trabalho», explica. A mensagem do GAC era passada através da música, com a qual «tentávamos passar a doutrina do bem», era também «uma forma de nos organizarmos», acrescenta António Duarte.

Nos tempos em que o GAC percorria o país, os seus elementos atuavam gratuitamente, sendo-lhes apenas pagos os custos de deslocação «com uma carinha e uma aparelhagem, pois atuávamos em qualquer lugar». Por vezes acabavam por ser envolvidos em episódios menos animadores. António Duarte não esquece uma «história arrepiante», em janeiro de 1975, quando o GAC se viu envolvido naquele que ficou conhecido como o “Cerco ao Palácio Cristal», no Porto. Convidados para atuar no I Congresso do CDS, houve uma revolta da esquerda, «que na altura tinha uma raiva ao CDS», e só de madrugada, com a ajuda das forças militares, os reféns puderam sair.

Entre as músicas que cantavam estavam as de Zeca Afonso e foi num dessas deslocações, no regresso a Lisboa, que António Duarte teve a oportunidade conhecer o cantor e compositor. O covilhanense fala das suas músicas como «algo de outro mundo». «Os poemas que ele fazia eram de uma forma tão bem pensada que quem os lê vê uma obra soberba», considera. Passados estes anos, recorda-o como «uma figura impar» do panorama artístico e musical português. António Duarte acabou por abandonar o GAC em 1975, altura em que termina o serviço militar e regressou à sua terra natal, Unhais da Serra, onde ainda hoje vive. Trabalhou nos serviços municipalizados da Câmara da Covilhã até se reformar, contando atualmente 66 anos. Já as “Vozes na Luta” continuaram o seu caminho até 1978, mas a relação de António Duarte com a música e com os artistas da época não acabara.

Democracia «com defeitos»

Recuando até ao dia da revolução, o ex-militar conta que foi apanhado de «surpresa» na madrugada de 25 de abril de 1974. Depois do golpe frustrado das Caldas da Rainha (em março desse ano), «estávamos desconfiados que algo estava para acontecer», tanto mais que era «urgente, o país não podia continuar como estava. A guerra do Ultramar absorvia 50 por cento do orçamento do Estado», recorda. No entanto, António Duarte confessa que viveu o dia da revolução «com alguma ansiedade, tínhamos medo de uma guerra civil», mas o dia acabou por ser «um sonho», pelo «desejo de liberdade que existia». Passados 43 anos, reconhece que existiram «erros e uma anarquia própria do momento, mas apesar de tudo o saldo é positivo».

No entanto, não deixa de se mostrar «desiludido com a democracia», pois considera que houve um «aproveitamento para criar riqueza, diferenças salariais e injustiças». António Duarte lamenta que exista hoje «muita riqueza em Portugal à custa dos 25 de Abril e que muitos se envergonham de pôr o cravo na lapela». Por isso, receia que a democracia então conseguida esteja de novo a dar «lugar ao medo», vivendo-se actualmente uma «democracia com defeitos». Dizendo-se um homem «tolerante e sem partido político», vê o entendimento à esquerda com bons olhos e espera que se «continuem a entender-se». Hoje, António Duarte continua a cantar as suas canções e dos cantores de Abril, sobretudo de Zeca Afonso, mas sempre gratuitamente, porque «cantar Zeca deve ser gratuitamente, salvo para cobrir despesas. Ele também não cantava por dinheiro», lembra.

Ana Eugénia Inácio António Duarte recorda os tempos em que percorreu o país com músicas de intervenção

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