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Razões de um voto

Foram a votos, no passado dia 29 de maio, na Assembleia da República, quatro projetos-lei apresentados pelo PAN, PEV, BE e pelo PS com o objetivo de despenalizar a Eutanásia.

Sendo um tema que a todos convoca e que enormes dúvidas levanta por se enquadrar nos especiais domínios dos direitos, liberdades e garantias fundamentais do indivíduo, que muito apela à reflexão ética e à absoluta ponderação sobre a substância de conceitos, valores, consciências e em última ratio de escolhas, impõe-se natural e alargada discussão.

Se a minha consciência individual me poderia ter levado a uma decisão sustentada na minha experiência de vida, nas minhas convicções religiosas e políticas, no fundo em todos os princípios e valores em que se respaldam as minhas opções, não era essa a minha exclusiva responsabilidade e, como tal, entendi não me demitir da obrigação de procurar interpretar o sentimento majoritário dos cidadãos que em mim depositaram a sua representação.

Antes de mais importa a clarificação de alguns conceitos que, não raras vezes, se confundem com Eutanásia, não o sendo.

Não constitui Eutanásia obrigar o doente a tratamentos e práticas médicas em situações terminais sem a sua devida permissão. Qualquer doente pode recusar tratamentos específicos e, assim, preferir o curso natural da doença. Não constitui Eutanásia a suspensão de suportes artificiais de vida a pedido do próprio doente em doenças terminais e irreversíveis. E também não podem confundir-se com Eutanásia tratamentos que têm como efeito secundário a diminuição do tempo de vida previsível, bem como os tratamentos inadequados e manifestamente desproporcionados face aos resultados.

Eutanásia é a morte de um indivíduo, a pedido deste, executada por um terceiro que, nos projetos sujeitos a votação, se previa pudesse vir a ocorrer através de um profissional de saúde.

Na qualidade de Deputada e membro de um Grupo de Trabalho (que durante meses ouviu na AR inúmeros especialistas, médicos e outros profissionais de saúde, entidades, cidadãos e juristas) e, enquanto cidadã, votei em consciência contra todos os projetos.

Traduzindo as razões de um qualquer voto, como referi, um misto de ponderação individual, mas também de sentimento de valor coletivo que se manifestará no consequente resultado prático dessa votação na nossa sociedade, naquilo que entendemos ser o caminho a seguir, é, contudo, sempre muito difícil e complexa a reflexão que conduziu à assunção de uma decisão nesta matéria.

Quando nos tentamos colocar na situação de alguém que é confrontado com um sofrimento indizível, entendo dever o doente ter o direito, e o Estado o correspetivo dever, de ser acompanhado com os adequados cuidados de saúde, cuidados continuados e paliativos, que sabemos serem já hoje adequados a controlar a dor. E isto para mim é um dado muito claro e objetivo.

Não sendo, porém, dado adquirido algum este acesso efetivo aos cuidados de saúde. Portugal está longe de aí chegar. E assim, a haver dúvidas, elas tenderiam a resistir.

Parece-me, no entanto, que o Estado, ao invés de legalizar a morte e, com isso, pretender significar que há vidas que merecem maior proteção do que outras (inscrevendo no quadro de valoração da nossa sociedade uma perigosa graduação), deveria investir mais na igualdade de acesso, na garantia absoluta de acesso aos cuidados de saúde para todos os cidadãos.

Bem sabemos que esta tipologia de cuidados tem custos, e aqui reside um outro perigo que a Eutanásia poderia trazer – uma medida de gestão e racionalização financeira que se poderia vir a sobrepor perante o primado da vida humana. O perigo da morte a pedido está pois, também, no seu próprio conceito e estrutura envolvente que ela necessariamente teria de comportar.

O que está em causa não é o obviar de um sofrimento, é o términus da vida e isso constitui, em minha modesta opinião, uma barreira que a nossa sociedade não se deve permitir transpor.

A liberdade individual não deve sobrepor-se a princípios basilares e estruturantes, como a vida humana, porque a liberdade tem como um dos seus elementares pressupostos, precisamente, a vida.

Não é um contrassenso podermos usar essa liberdade para morrer? Queremos nós ser parte de uma suposta liberdade em que alguém pede para morrer em circunstâncias agonizantes, em sofrimento, em dependência, a sentir-se frágil e pesado para todos os seus? Poderá este ser considerado um pedido exercido em verdadeira liberdade?

O conceito de sociedade que preconizo tem absoluto respeito pela vida humana, não desiste dela e deve disponibilizar-lhe todas as condições dignas precisamente em vida. A sociedade que preconizo é solidária e não se desresponsabiliza da vida humana, sobretudo da vida humana mais frágil.

Sabemos que temos um longo caminho a fazer na garantia da difusão da rede de cuidados continuados e paliativos, mas esse é um dos caminhos a seguir. Também o Estatuto do Cuidador Informal, articulado com o sector social de qualidade existente por todo o nosso território, há muito deveria ter já saído do papel, ajudando neste caminho.

A vida humana é inviolável, é o valor supremo que nos move enquanto sociedade, o que mais nos convoca, devendo pois a vida ser preservada em qualquer circunstância, utilizando os avanços da ciência de forma a garantir condições de dignidade em qualquer dos seus estados ou fases. A legalização da Eutanásia viria, em meu entender, interromper este caminho que é o único que permite afirmar o primado da Vida Humana. Acredito que assim seja. Razões e dúvidas que considerei suficientes para ter votado Contra.

Por: Ângela Guerra

* Deputada do PSD na Assembleia da República eleita pelo círculo da Guarda e presidente da Assembleia Municipal de Pinhel

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