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Raskol

Letra A

22 de Dezembro de 1849. Na praça Semenov, em São Petersburgo, os pés dos transeuntes enterravam-se fundos na neve. Vários regimentos de infantaria guardavam a praça, entre os quais a Guarda Imperial do Regimento de Infantaria de Moscovo, pois um dos homens condenados à morte nesse dia fora oficial daquele regimento. O pano negro que recobria o cadafalso salpicava-se dos flocos brancos da neve. Sobre ele esperavam vinte e um homens, dezasseis dos quais entregues ao carrasco. Entre estes contava-se Dostoievski.

Voltemos atrás. O grande escritor havia nascido em 1821, numa altura em que o ímpeto reformista do czar Alexandre II, 40 anos depois, aproximando a Santa Rússia da Europa, era uma simples quimera que se pagava com a vida. Falamos de um mundo em que a prosperidade se media pelo número de “almas”, servos em regime de escravidão, ao dispor de uma aristocracia burocratizada ao serviço de um czar paternalista e inumano. Naquele tempo, uma rapariga não custava mais de 50 rublos. Quando algum homem pagava 700 rublos pela jovem por quem se apaixonara, os vizinhos alcunhavam-no de maluco. Para avaliar quão pouco a vida humana valia naqueles tempos, basta saber-se que um bom cavalo de sela custava algumas centenas de rublos, e um jantar, num restaurante distinto da capital, rublo e meio.

À boa maneira asiática, a sociedade russa daquele tempo estava rigorosamente estratificada: nobreza, clero, negociantes, cidadãos, camponeses e mais alguns grupos intermédios. A classe culta compunha-se de nobres, oficiais e funcionários públicos. Desde o tempo de Pedro o Grande cada nobre era compelido a “servir”. Tal “serviço”, porém, era de duração curta: permitia-se que se resignasse o cargo a favor de indivíduo de classe mais baixa e se levasse o resto da vida liberto de ambições públicas. Os oficiais dividiam-se em 14 patentes. Cada nobre poder-se-ia inscrever em seis registos. A verdadeira nobreza pertencia ao 1º e ao 6º, denominando-se o último registo de “veludo”, reservado para as famílias antigas. Os fidalgos estrangeiros inscreviam-se no quarto registo; nobres com os título de príncipe, conde ou barão, no quinto, enquanto e 2º e 3º se destinavam aos oficiais e funcionários que pessoalmente conquistaram o título, ao atingirem certa categoria hierárquica.

Em Janeiro de 1838, Dostoievski deixou o colégio de Kostomarov pela escola militar de engenharia de Petersburgo. Aí encontrou algumas das afinidades e círculos de influência que haveriam de o perseguir para o resto da sua vida. A publicação de “Pobre Gente” tinha-lhe garantido a entrada nos meios literários da capital. Entre eles, encontrava-se o círculo conspiratório animado por Petrashevski, que houvera criado um grupo de seguidores, de inspiração fourreísta, dispostos a introduzir reformas liberais e progressistas na Rússia. O movimento criado era “A Primavera dos Povos”. Numa dessas reuniões, Dostoievski leu uma carta de Belinski, aquele que se haveria de tornar o seu maior inimigo, endereçada ao grande Turguenev. Tal leitura custou-lhe a condenação à morte, por delito de opinião.

Encontramos o escritor novamente em frente do pelotão de fuzilamento. Sabe-se que, à última da hora, através de um emissário pessoal do czar, a sua e as outras penas foram comutadas entre o “simples” degredo vitalício para a Sibéria, até uns simples quatro anos num centro de detenção naquelas gélidas paragens, no seu caso. Desse tempo em Omsk nasceu uma das obras-primas da literatura, justamente intitulada “Recordações da Casa dos Mortos”. O eslavismo cristão e uma cruel análise psicológica lado a lado numa fascinante “reportagem” jornalística, mas sobretudo literária.

Por: António Godinho

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