Na terra das motorizadas, quem tem burro é rei por um ano. O caso não é de loucos, mas de asnos, jumentos e outras variedades asininas, celebradas no último domingo na Rapoula, a poucos quilómetros da Guarda, por ocasião do primeiro festival cultural da localidade. Uma iniciativa da Associação Cultural, Desportiva e Recreativa (ACDR) da freguesia que juntou 18 espécimes para, sem ironias e maldizeres, chamar a atenção para uma raça em vias de extinção. E nem a Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino faltou à chamada.
O desfile de burros, a fina flor vinda das redondezas, foi o ponto alto de um fim-de-semana dedicado às tradições, artesanato e música popular, e ditou a coroação do animal trazido de Guilhafonso por Leonel Marques. O jumento, equipado com alforges para transportar dois cabritos para o mercado, foi considerado o burro do ano tendo em conta a originalidade da apresentação, o aspecto focado e as características do animal, cabendo-lhe agora a árdua missão de evocar valores menosprezados durante décadas como a rusticidade, resistência e docilidade. O seu dono já prometeu contribuir para essa tarefa e evitar que o bom nome da raça caia na lama sem apelo nem agravo: «Daqui para frente vai ter direito a uma raçãozinha diária especial para que no próximo ano possa vir mais forte e valente», garante Leonel Marques. Até lá, António Monteiro, biólogo e representante da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA), que presidiu ao júri, agradece este tipo de iniciativa, na medida em que «valorizam os burros perante a população e potenciam o seu valor para o turismo e outro tipo de aproveitamentos». Eis o busílis da sobrevivência asinina.
Criada há dois anos para salvaguardar a presença dos burros na paisagem rural portuguesa, a associação clama por medidas de estudo e protecção destes animais. «Há um atraso de décadas em relação a Espanha, onde existem quatro raças autóctones que o Estado se preocupou em preservar», explica Monteiro. O biólogo considera que os asnos têm um lugar próprio «insubstituível» nas actividades do mundo rural e um potencial de aproveitamento ainda por explorar na hipoterapia, no turismo rural e de Natureza, mas também enquanto animais de estimação. E esse pode ser o futuro dos burros, muitas vezes apodados dos defeitos dos humanos que não têm sabido ver o seu «carisma muito especial» para com as pessoas, «ao ponto de estabelecerem laços com donos e crianças, o que não é muito noutros animais», sublinha António Monteiro. «Seria muito importante que se fizesse na Beira o que se tem feito em Trás-os-Montes e Alentejo. É, sem dúvida, a altura própria para valorizar as nossas raízes e pressionar as entidades responsáveis, como a DRABI, para se dedicarem verdadeiramente às essências das nossas regiões rurais mais genuínas e elaborassem com urgência um estudo zootécnico sobre as raças ou variedades regionais de animais domésticos – entre os quais os asininos», defende o dirigente da AEPGA.
Mais terra-a-terra, Ricardo Maia, da organização do festival cultural da Rapoula, confessa que a ideia de dedicar o evento teve origem num sonho com um jumento do presidente da colectividade. Vai daí, a ACDR pegou na sugestão e aproveitou a ocasião para «chamar a atenção» das pessoas para o facto dos burros estarem em vias de extinção. O resto e o sucesso da opção esteve à vista no domingo, um dia também festivo para os jumentos que continuam a desenvolver todo o tipo de trabalhos agrícolas e passeio. «São indispensáveis na agricultura e noutras tarefas domésticas, como carregar água, batatas e outras coisas. Não são burros de todo, antes pelo contrário, são animais muito dóceis e bem mandados», realça Ricardo Maia, para quem a Rapoula poderá doravante ser conhecida como uma «terra de burros». Sem ofensa.
Luis Martins