Arquivo

Quem foi à missa na Páscoa?

Tresler

Metade dos leitores que seguem este texto não terão ido à missa de Páscoa e aposto que a maior parte deles serão católicos de domingo, católicos “não praticantes”, católicos declarados mas não reais. Quando nos interrogamos sobre o que nos levou a quebrar amarras relativamente às práticas religiosas que nos incutiram na infância, encolhemos os ombros ou lançamos uma desculpa justificativa: são os tempos que correm! Nada mais verdadeiro.

Na verdade, se há razão que se pode dar para termos rejeitado a prática da “religião do catecismo decorado e prescritivo” com que nos educaram, ela é a cultura secular e laica em que vivemos mergulhados com o acento tónico situado na razão, na ciência, na economia e na procura do bem-estar. O outro lado da explicação tem a ver com a fragilidade dos dogmas, verdades e normas religiosas face a uma crítica racional, possível na cultura atual, dos textos e das normas da religião. Verifica-se entretanto que os teólogos mudaram nos últimos anos, às vezes em 180 graus, a perspetiva sobre os textos e verdades bíblicas. O teólogo espanhol Andrés Queiruga defende assim que «temos de viver a fé no nosso tempo, na nossa cultura, e não podemos continuar a aceitar versões que aparecem ao homem e à mulher de hoje como pueris, absurdas ou sem sentido».

Por exemplo, a ressurreição de Cristo, facto superior do cristianismo, deixou de ser apresentada pelos teólogos como uma realidade explicável empírica e historicamente a partir de um túmulo vazio e do testemunho dos que tocaram Jesus. A ressurreição é um dos factos em que a leitura “literal” da Bíblia não ajuda nada e essa leitura dos textos bíblicos evoluiu também muito. Algo de idêntico se passa quando refletimos na projeção que fazemos para o pós-morte com as ideias de juízo final, de céu e inferno, de imploração pelos mortos. Tudo ideias construídas ao longo de muitos séculos de cultura mas que não resistem ao olhar de exegetas e teólogos sob o sol do séc. XXI. Sendo o trajeto de Jesus um trajeto de homem que se construiu no que de mais perfeito ao nível humano se pôde realizar, que sentido faz imaginarmos no pós-morte um mar de chamas onde seremos castigados, que sentido faz rezarmos para acelerar a saída das almas do fogo do purgatório, que sentido faz prevermos um juízo final após o qual as almas se juntarão de novo aos corpos, se o que morre é um todo? Ora o que dizem agora os novos teólogos é que a ressurreição de Jesus é apenas a manifestação simbólica e impressiva nele de algo que sempre se passou em cada homem («O que Deus fez em Jesus Deus fá-lo sempre e fê-lo sempre», diz Roger Haight). Ou seja, o homem, qualquer homem, ultrapassa através de Deus as suas limitações e pode afirmar-se como Homem numa ressurreição pessoal. E foi isso que Jesus veio mostrar.

Algo de idêntico na evolução da atitude da Igreja para os textos bíblicos e as normas do catecismo se verifica quando falamos do ecumenismo, realidade ainda mal digerida por muita gente. Ora o que grande parte dos teólogos cristãos agora já diz é que não faria sentido defender hoje a religião cristã como a única verdadeira, como nos diziam quando aprendíamos em crianças o catecismo, apontando os missionários a evangelizar os pagãozinhos. Deus é igual ou idêntico de religião para religião, todas ao mesmo nível, todas vistas como caminhos para chegar à plena realização do homem na terra e como meio de elevação para Deus. Aliás são mesmo os teólogos cristãos que nos dizem agora que esse exclusivismo não faria sentido já que isso estaria em contradição com «a vontade salvífica universal de Deus» (Haight). O mesmo teólogo nos lembra que não se perceberia que, pelo facto de os cristãos terem sido salvos por Deus através de Jesus, outros povos e civilizações não pudessem aceder à salvação de Deus «por outras vias e por outros mediadores».

Quando lemos isto e nos lembramos da injeção de exclusivismo e unicidade que levámos sobre a nossa religião no ensino do catecismo na infância, compreendemos agora como é que ela não poderia aguentar as investidas do mundo atual, aberto e plural. A construção da Igreja pelo modelo hierárquico e autoritário de S. Paulo levou a religião para o campo do “nomos” (conjunto de normas a seguir) e do “logos” (aceitação da “palavra”) menosprezando aquilo que havia sido central no Evangelho: o “bios”, a vida de Jesus e o modelo de vida que defendeu, de dignidade, entendimento e perdão. Cristo nunca pronunciou a palavra “Igreja” e, pelo que dizem agora os teólogos, nunca terá pensado fundá-la. A ideia de cristãos que dizem seguir Cristo e odiar a sua Igreja não pode ser mais atual e até natural. Um desafio para o papa Francisco que parece querer voltar a sua orientação para o “bios” e menos para o “nomos”.

(Refiro de novo a coletânea “Quem foi, quem é Jesus Cristo?”, coordenada pelo padre Anselmo Borges, de onde as referências acima transcritas foram retiradas)

Por: Joaquim Igreja

Sobre o autor

Leave a Reply