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«Quanto mais surdos estiverem em conjunto mais aprendem e desenvolvem a língua gestual»

Cara a Cara – Sofia Afonso

P – A Despertar do Silêncio é uma IPSS que atua nas áreas social, educativa e cultural. Pode destacar algumas atividades?

R – Uma delas foi o projeto de percussão Ribombar, que, infelizmente, terminou quando os jovens acabaram os estudos e seguiram a sua vida. Outro projeto foi o teatro e, se eu tivesse tempo disponível, continuava. Já fiz várias peças e recordo uma sobre a Sida e outra sobre o mito de Orfeu e Eurides. Temos a formação em língua gestual. No início era sempre na associação, mas depois assinamos um protocolo de parceria com a escola da Sé porque havia lá muitos surdos e os profissionais de educação queriam comunicar com eles.

Em conjunto com os professores da escola de São Miguel escrevi, em 2012, o livro “A Galinha Ruiva”. Uma parte tem a história com os desenhos dos animais e na outra há um boneco a contar a história em língua gestual. Quem lê o livro apercebe-se que a língua falada e a língua gestual têm gramáticas diferentes. Na gestual os verbos estão no fim da frase, os artigos definidos não existem porque os surdos usam só as palavras-chave e usamos a figura da glosa, que é a troca da ordem das palavras. Os surdos são muito expressivos! Dá para perceber quando é uma afirmação ou uma pergunta.

Quase não tenho tempo livre porque faço o trabalho da associação e estou em várias escolas. Técnicos, terapeutas da fala, professores do ensino especial e formadores de língua gestual deslocam-se às várias escolas onde estão os meninos surdos. Infelizmente não estão agrupados, isso era o ideal. Não acontece porque são os pais que decidem onde querem matricular os filhos de acordo com a sua preferência. Em 2008 surgiu o projeto das “Escolas de Referência”, que pretendia juntar os surdos fazendo uma turma, mas não é obrigatório. Quanto mais surdos estiverem em conjunto mais aprendem e desenvolvem a língua gestual.

P – Acredita que isso acontece porque os pais querem evitar a discriminação e que os filhos surdos se tornem pessoas diferentes fora do ambiente escolar normal?

R – Mesmo que os filhos estejam numa escola de surdos não deixam de conviver com crianças ouvintes. Os pais têm receio que se eles aprenderem a língua gestual podem deixar de oralizar a língua portuguesa. Mas não é bem assim. Dá para aprender as duas línguas se as famílias e as escolas trabalharem em conjunto. Na Guarda há poucas crianças surdas e não chega para criarem uma turma. Ficam matriculadas com crianças ouvintes e os pais aceitam isso. Eu sempre defendi a aprendizagem da língua gestual porque, se não acontecer, há uma altura em que a criança não entende os conceitos e as matérias. Os professores têm de confirmar sempre se os alunos surdos perceberam mesmo. Se aprender língua gestual, a criança desenvolve o raciocínio e aprende mais.

P – Existe boa adesão à vossa formação em língua gestual? Qual é o público que a procura?

R – São pessoas das áreas da educação (professores, auxiliares, estudantes) e da saúde (enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas) e ainda bancários e bombeiros. Outro projeto da associação na formação é ensinar língua gestual às crianças ouvintes e sensibilizá-las.

P – O que faz a Associação de Surdos da Guarda além de ensinar língua gestual?

R – Na área social temos dois intérpretes que acompanham os surdos nas deslocações a organismos como as Finanças, a Segurança Social, o Centro de Emprego. Culturalmente, participamos em feiras com os vários materiais da associação e coisas feitas por eles, porque têm grande habilidade manual. O objetivo é mostrar que existe a associação e que podemos ajudar de várias formas – seja uma criança surda, uma pessoa que perdeu a audição ou alguém que procura material relacionado com a língua gestual ou com a surdez. setembro é um mês especial para nós porque no último domingo assinalamos o Dia Mundial do Surdo, já no dia 25 de outubro o grupo da área de desporto organiza um campeonato. Também adoramos os passeios porque nos encontramos com outras associações, convivemos e conversamos muito.

P – Como é que a Despertar do Silêncio apoia os surdos no distrito da Guarda?

R – De duas formas. Com transportes apoiamos adultos que precisam fazer tratamentos de saúde, tal como ajudamos crianças surdas, de outras localidades, que frequentam a escola na Guarda para, de tarde, terem apoio na língua gestual, na terapia da fala e ensino especial. Quando a Câmara não pode fazer o transporte são os próprios surdos – sócios da Associação – que se entre ajudam.

P – Qual o objetivo e a importância destas atividades?

R – O objetivo é atenuar as barreiras para que os surdos sintam segurança e bem-estar.

P – Quais são as principais dificuldades dos surdos na região?

R – São a comunicação e o desemprego. Se o intérprete acompanha o surdo e traduz, tudo corre bem. O surdo fala por mímica e, às vezes, há alguns que até se esforçam para oralizar. Eles contactam-nos quando há uma falha de comunicação. Por isso, acho importante que os ouvintes aprendam, pelo menos um bocadinho, a língua gestual. Os surdos ficam muito contentes quando encontram essas pessoas. Sobre o desemprego, mesmo com condições especiais de apoio à contratação de pessoas com deficiência, temos seis jovens desempregados. O problema é que hoje, infelizmente, não existe mesmo trabalho.

P – Como é possível ultrapassar essas dificuldades?

R – A língua gestual não é difícil, mas tem de ser praticada. Se os ouvintes aprendem e não praticam, então, dois meses depois esquecem tudo. Por isso, o ideal seria conviverem com os surdos.

P – O contacto diário entre eles não se proporciona porquê?

R – Podia acontecer se as pessoas participassem nas atividades dos surdos na sede da associação – aos sábados, das nove à meia-noite. Em determinados locais, como a Câmara, trabalham dois surdos e, no convívio com eles, os ouvintes aprendem língua gestual.

P – Mesmo com estes problemas, os surdos acabam por se sentirem pessoas realizadas na vida?

R – Quando o surdo quer uma coisa, ele faz. Tem uma vida tão normal como as outras pessoas, só existem algumas diferenças na cultura surda, como a campainha de casa ser um sinal de luz em vez de sonoro.

P – Quais os apoios existentes à Despertar do Silêncio?

R – Temos apoios da Câmara e de quem queira ajudar. Temos ainda protocolos de parceria com várias instituições (Centro de Estudos e Formação de Atividades Desportivas, Fundação Augusto Gil, Instituto Politécnico da Guarda, Escola da Sé, Associação de Jogos Tradicionais e muitas outras). Funcionam como troca de serviços e empréstimos, por exemplo, equipamentos por formação.

P – Neste momento quantos associados têm?

R – Presentemente são 187 sócios, dos quais 62 são surdos.

P – Como é que as pessoas se podem tornar sócias? O que é que isso pode representar para a Despertar do Silêncio?

R – Podem contactar a Associação diretamente na sede ou enviarem um email. Preenchem a ficha de inscrição, pagam uma joia e a quota anual de sete euros. Também podem fazer donativos porque somos uma Instituição Particular de Solidariedade Social. Queremos que se juntem a nós mais pessoas, que venham mais à associação e que convivam mais com os surdos participando nas nossas atividades.

Sofia Afonso

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