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Prova de vida

Tenho a comunicar aos meus leitores que comi o melhor sargo da minha vida, aqui há uns dias, na Ria de Alvor. Numa fabulosa manhã de sol derramado sobre as águas quietas da Ria, onde o dinâmico empresário Aprígio Santos, presidente da Naval F.C., sonha poder construir empreendimentos a perder de vista (porque, como explicou lapidarmente um autarca local, “a natureza também tem de nos dar alguma coisa em troca”), ocorreu-me pela milésima vez que os portugueses de agora não merecem o país que receberam. Umas semanas antes, levado pela mão do Paulo C. S. e da sua gentil mãe, tinha jantado em Braga um inesquecível arroz de tordos. Sorte, dirão vocês! Peço desculpa: mérito, cultura geral. Estas coisas não acontecem por sorte, é preciso procurar, andar informado, saber que os sargos estão gordos e ovados entre Fevereiro e Março e que os tordos vêm comer as azeitonas na mesma época do ano.

Estava eu a comer o arroz de tordos em Braga e o professor Cavaco a visitar a Índia, carregado de empresários e cautelas com a comida picante, que o seu presidencial organismo não suporta. Estava eu a comer o meu sargo em Alvor e o esforçado engenheiro Sócrates a correr na manhã de Xangai, rodeado de seguranças, empresários e preocupações. Sempre me intrigaram os que correm sem sentido, assim como aqueles que chegam a uma praia e desatam a nadar sem horizonte alcançável. Eu gosto de correr só se for atrás de uma bola e de nadar só se for em direcção a qualquer coisa. Agora, andar para ali a correr e a nadar sem perspectiva, francamente ultrapassa-me. E preocupa-me.

Preocupa-me que o Presidente tenha apelado a que se legisle contra “o tabagismo, o álcool, a obesidade e a vida sedentária”. Preocupa-me que o primeiro-ministro, levado pela onda de cooperação institucional, se lembre de o escu- tar. Preocupa-me que eles dois viajem pela Índia e pela China levando na bagagem apenas negócios, saúde e bons hábitos. Preocupa-me um Portugal virtuoso e higiénico, à imagem do Portugal de Salazar, esse herói, agora revisitado, da nacionalidade.

Lá em baixo, na Ria de Alvor, a grande preocupação é uma qualquer directiva comunitária que pretende abolir da via pública, dos restaurantes e dos hábitos alimentares, essa nossa selvagem tradição do peixe grelhado em carvão. E, ao que parece, vai daí e a Câmara de Portimão está a instar os restaurantes da Ria a recolherem os fogareiros e as bancas de peixe à vista, e passarem a cozinhá-los lá dentro, escondidos de quem passa e vê, e assados, de preferência, em grelha eléctrica. A sério: a mesma Câmara que, vereação após vereação, transformou Portimão numa das mais horrendas e caóticas cidades do mundo e se prepara para entregar a Ria de Alvor à especulação imobiliária logo que possa, está preocupada com a “má imagem” que o peixe grelhado na rua e no carvão poderá dar a essa Europa culta – cujas sábias directivas higiénicas já nos liquidaram o queijo da Serra e agora se preparam para nos liquidar as sardinhas assadas. Isto é que é modernidade, saúde, Plano Tecnológico! A seguir, é só atender aos apelos do Presidente e fazer umas leizinhas contra o tabaco, o álcool, a obesidade, a vida sedentária, as pevides e tremoços que fazem mal ao colesterol, os amendoins que podem causar cancro, as azeitonas que fazem mal à próstata, o peixe grelhado que contribui para o efeito estufa, e eis-nos transformados num país moderno, europeu, asséptico, ascético, higiénico e vigilante dos costumes.

Mas eu sei, eu devo reconhecer que eles têm democraticamente razão. Façam para aí umas sondagens, perguntem aos portugueses na rua, e eles estão todos de acordo com tudo o que lhes cheire a ‘modernidade’: os fumadores agradecem que os proíbam de fumar em todo o lado; os pacientes das filas de trânsito em Lisboa estão de acordo com os novos radares municipais que os vão explorar até ao tutano, nos raros locais e ocasiões em que possam circular a mais de 50 kms/hora; os gordos agradecem que lhes acabem com o queijo da Serra amanteigado e se preparem para fazer o mesmo às horríveis sardinhas assadas; os “pacientes” (extraordinária palavra!) do colesterol estão reconhecidos a quem determinou que o azeite tem de ser todo igual, de marca, inviolável e sem sabor; os sedentários suspiram por um decreto que os obrigue a correr três quilómetros por dia, como o engenheiro Sócrates; os noctivagos estão mortinhos pelo dia em que só lhes sirvam pirolitos e sumos naturais nos bares; os caçadores nada mais desejam do que a hipótese de se curarem clinicamente desse instinto homicida que os leva a querer matar animaizinhos que voam ou correm por essa natureza fora; os doentes do futebol querem que os castiguem de cada vez que chamarem nomes à mãe do árbitro ou rogarem pragas ao presidente do outro clube. Todos, se perguntados, vão querer um país novo,livre de pecado e vício, de cheiro a sardinhas assadas ou jaquinzinhos fritos, um país assim… como Bruxelas, essa cidade empolgante. Só escapam os casinos – que esses são modernos, cheios de «glamour», «design», cultura, «su-shi», «smokings», «jackpots» e «nouvelle cuisine». Os portugueses adoram que os flagelem, que os proíbam, que os controlem, que os persigam, que tomem conta deles, como nos bons velhos tempos do senhor de Santa Comba.

É por estas e por outras que eu cada vez admiro mais os espanhóis. Disseram-lhes que tinham de adoptar os horários e hábitos de vida europeus e eles continuaram com a sua sagrada sesta. Quiseram-nos proibir de fumar em todo o lado e eles não levaram a sério. Deram-lhes uma lei do aborto igual à que nós tínhamos e eles levaram-na a sério e não deixaram que o lóbi dos médicos católicos a boicotasse. Ousaram sugerir a proibição dos touros de morte e eles responderam “nem se atrevam!” E, com tanta resistência pacífica e cívica, a Espanha é hoje um dos mais modernos e civilizados países do mundo. Continuando fiel à sua identidade e orgulhosa dela. Um país que não respeita as suas tra- dições não presta. Um país que não respeita os seus hábitos e a sua cultura, não existe: é assim uma espécie de alforreca, sem cor, nem cheiro, nem identidade. Uma Maria vai com todos.

No meu íntimo, talvez eu até tenha inveja do Presidente, que gosta de nadar sem horizonte, ou do primeiro-ministro, que gosta de correr sem objectivo: vão ambos morrer cheios de saúde. Enquanto que eu vou arrastando esta condenada carcaça, com uma única certeza: é que, por enquanto, estou vivo. Enquanto me deixarem.

Por: Miguel Sousa Tavares

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