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Princesa de Nenhures

PRÉMIO RIACHO – 3ª classificada

Sentada no parapeito da janela do meu quarto, observei a melancolia daquele fim de tarde de Outubro. A chuva, lá fora, caía intensamente. Uma folha alaranjada passeou-se de forma demorada junto do vidro. Um “shhh” da brisa de Outono chegou até mim. No quintal voava a primeira página do jornal da semana anterior. Uma rapariga corria ao longo da estrada, com os seus cabelos pretos a ondular ao vento, trouxe-me à lembrança uma daquelas princesas de contos romanescos, muito esguia, muito cândida, com uns olhos de um azul muito líquido e que de tão transparentes deixavam adivinhar todos os segredos que aquela alma tentava esconder por trás deles. O seu jeito doce contrastava com as lágrimas salgadas que percorriam o seu rosto, combinando-se com as gotas de chuva.

Ela apenas corria, sem destino, sem plano. Fugia sem saber bem de quê ou de quem. Prosseguia porque algo lhe dizia que era o mais acertado. As suas pernas não lhe pertenciam, respondiam a comandos que ela não tinha feito, porém em nada lhe importava que elas já não fossem suas, era somente mais uma coisa, entre tudo o resto a que um dia chamou de “seu”, que agora entregava a um outro alguém.

O mundo tinha-a engolido e ainda tão pouco tempo antes se tinha considerado a sua dona e senhora. A rapariguinha perdera tudo, mas esse seu tudo um dia tivera um bonito rosto, uns cabelos louros, uns olhos verde-esmeralda, um coração. A menina tinha o hábito de o chamar de Príncipe, talvez porque, mesmo sem cavalo branco, coroa e trajes sumptuosos, ele a coroava rainha só com o olhar. E, tal como nos contos de fadas, ele prometera-lhe uma eternidade de contentamento, ela acreditara nessa ideia tão néscia. Contudo, agora que ele não estava, ela inspirava e expirava mas não havia ar que entrasse ou saísse, os seus pulmões vazios suspiravam por oxigénio, faltava-lhe o ar, ia morrendo, faltava-lhe o seu Príncipe e sem ele nada saciaria essa sede pulmonar. Ela respirava-o!

Ouvi-a dizer a palavra “morte” em voz alta mas nem assim esta fez o menor sentido, dizê-la apenas fez com que a rapariga visse o quão mal soava. No entanto, era apenas um termo, que se pensa, que se escreve, que se diz, feito de letras e nada mais. O que realmente a incomodava era a ideia, o pensamento e o sentimento implícitos no vocábulo. Talvez por isso a odiasse tanto, porque escondia por trás de si conceitos que apenas se deixavam ver por um conjunto de letras. Fora aquela palavra vil e dissimulada que arrancara de si o seu Príncipe e ainda assim não vira ninguém acusá-la por tal crime e assim continuava ela na boca de todos nós, hipócrita, impune, pelo pior crime do mundo.

A menina continuava a correr, sem parar, fugia do mundo mas estava cansada desta corrida que nunca ganharia. Constatei então que tudo estava contra ela, era o ar gélido que respirava, era o vento cortante que lhe varria o rosto, era a chuva que lhe encharcava as roupas, era o relógio que não lhe dava tréguas. Todavia, ela continuava lá, imune às intempéries e nem um furacão a faria arredar pé! Porque aquela alma ingénua e tola ainda tinha uma esperança utópica dentro dela e todos aqueles sonhos infundados ainda a consagravam rainha de um país sem território.

Fechou os olhos como que num acto reflexo de derradeiro esforço. Divisou de novo um universo encantado em que tudo era perfeito, como ela outrora vira neste. Abriu os olhos e então apercebeu-se de que nada era como ela vira antes e que afinal ter vivido na ilusão apenas a magoara mais, e quando fechou os olhos de novo já não conseguiu ver o mundo que queria, apenas o escuro; porém, aí sim, estava realmente a ver! Aí viu como tudo é assustadoramente escuro e solitário.

Exausta e desiludida, infeliz e desesperada, rendeu-se por fim. Sentou-se no passeio e esperou que o sono chegasse, queria voltar a fechar os olhos e ter aquela visão idílica mas não conseguiu, sentia então uma extrema frustração.

O autocarro chegou à paragem, ninguém entrou ou saiu dele. A rua continuou deserta. Não havia pessoa alguma que ousasse quebrar aquela melancolia. Ainda assim o motorista não arrancou, continuou parado como que à espera de alguém. Ela continuou ali, de olhos fechados e deu-me vontade de gritar à menina parva que acordasse para a vida, que olhasse para o autocarro pois este ainda seguia viagem e ela continuaria na berma da estrada, sozinha e perdida em divagações insustentáveis.

Por fim, o autocarro partiu, rumo ao seu destino incerto, e foi nesse mesmo instante que eu percebi que a decisão de ficar fora deliberada. Ao desistir daquela ida, ela desistia de toda uma etapa. Desistia de um rumo e tomava outro completamente diferente. Levantou-se e recompôs-se, soltou um leve sorriso e acenou na minha direcção. Levantei a minha mão em sinal de despedida. Ela regressou pelo mesmo caminho que a tinha levado até ali, como que recuperando cada passo que tinha tomado.

Sofia Carvalhinho (11º D)

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