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Presépio “comunitário”

VENTOS DE ALÉM-TEJO (opinião)

Os arautos da desgraça que vivem dizendo que o país se encontra mergulhado numa onda irremediável de crise e de pessimismo por vezes enganam-se. Enredados nessas ideias derrotistas, tolda-se-lhes a vista e ignoram aqueles que não se conformam e lutam em permanente contracorrente.

Destes últimos falo-vos hoje. Paula Canelas, 34 anos, mãe de um projecto que nasceu há dois meses e meio e que envolveu as gentes de Castelo Ventoso, concelho de Alcácer do Sal. Falo-vos de cerca de dezassete pessoas dos 3 aos 83 anos, que, somente com algum apoio da Junta de Freguesia, construíram um presépio, diria eu regional, o qual é um verdadeiro exemplo de dedicação, desprendimento e amor à terra. Mas fixemos alguns pormenores: espalhando-se por largos metros quadrados, naquela localidade, mesmo à beira da E.N. 120, encontram-se os traços do gosto popular, que enriquecem a representação das actividades económicas da região, fundindo-se tradição e saber “de experiência feito” – destacam-se a figura da “coque”, a cozinheira que tratava do almoço dos ranchos de “ratinhos” (os trabalhadores que migravam das Beiras), a monda do arroz, a praça de touros, a taberna, a actividade piscatória, o rancho folclórico ou a fé na Nossa Senhora de Fátima. Espalhadas estrategicamente pelo recinto, as quadras apelam constantemente à lembrança das eras em que esta região ainda era o celeiro de Portugal. Um rumor faz-se ouvir por entre mondadeiras e ganhões: Quem quer ver a barca bela/ Que se vai deitar ao mar/ O Nosso Senhor vai nela/ E os anjos vão a remar….

Vejo nos olhos de Paula Canelas um orgulho mal disfarçado:

“— As ideias vieram todas de mim; a maluquice é minha, mas os outros vão sempre atrás de mim.”

Surpreendo-me ao saber que a maravilha construída com panos, pedras, areia do mar, cortiça e caixas de peixe dependeu sobretudo da genuína vontade dos mais velhos, que também se empenharam arduamente na apanha das trezentas e tal caixas de musgo pelas serranias de Grândola. Alguém me dá conta da incrível preocupação de uma idosa durante a execução dos vários elementos do presépio: “— Se eu acordo doente, como é que vou trabalhar?”.

Eis-me perante um sonho vivo. Está feita a “Aldeia da Esperança”, um quase-epitáfio que lembra à Câmara o esquecimento a que a população envelhecida de Castelo Ventoso tem sido votada, o qual também se constitui como um sinal de confiança no futuro.

Agora, os obreiros lá estão, à noite, contemplando o produto da sua boa-vontade, que mostram com orgulho e alegria, e nem a força do frio os pode conter.

Pedro Lopes

(pamlopes1@gmail.com

)

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