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Pradial

1. A tarde estava abrasadora. Numa das salas do Tribunal, B. consultava um processo que não acaba de se desenrolar diante dos seus olhos, à maneira dos extensos e infindáveis rolos medievais. A janela dava para o parque de estacionamento privativo do edifício. Às tantas, apercebeu-se da chegada de uma juíza, no seu veículo de alta cilindrada. Que estacionou, após alguma hesitação, às três tabelas, na primeira vaga que encontrou. Impedindo assim a saída de outros três aí estacionados. Nada de realmente preocupante. “Quem quisesse sair que apitasse, ora essa!” Saiu do veículo, calmamente, e preparava-se para abandonar o local sem o cuidado devido (como se diz no jargão judiciário). A atendedora das suplicações e querelas apresentava um tom geral encantadoramente displicente. Ainda que, segundo os sussurros que vagueavam pelos corredores, temperado com um feérico rigor para com os acoimados que lhe caíam nas mãos. Enquanto a via deambular pelo parque, com os cabelos à solta, tentando perceber se a sua viatura estava bem estacionada, B reparou no pormenor fatal: as botas. Pretas, luzidias, de cano até ao joelho e, já adivinharam, com saltos altos. “Perfeito!”, disse para consigo, enquanto desembaciava a vidraça. Entretanto, chega um funcionário solícito, a roçar o servilismo. Foi logo ter com a senhora dótôra – “Muito boa tarde, sra. dra.! É que está um destes bafos!…” – percebendo-se nele o acentuar da convexidade da coluna, dobrada num ângulo próximo dos 30º. Claro que se ofereceu com prontidão para resolver o problema de estacionamento da sra. dra.! Convencendo-a de imediato a retirar o veículo e ensaiar uma manobra relativamente fácil. A qual o funcionário adornou com alguns pozinhos cautelares, adivinhando a duvidosa proficiência da sra dra… Ora, a sra.dra, ao fim de dez minutos, conseguiu encaixar o bólide na única ranhura disponível do parque! Lindo! Após o que saiu, triunfante. Neste momento, apoderou-se de B uma feroz imaginação lúbrica, muito apropriada para a criação artística, dizem. Porém, certamente ainda mais para curtas metragens menores, embora intensas, como é o caso. B imaginou a sra. dra nas vestes de uma impiedosa “dominatrix” e o funcionário como receptivo “saco de boxe” dos maus tratos! Personagens num número improvisado de “bondage”! A galeria de fetiches, como é de calcular, encabeçada pelas incontornáveis botas. A coisa passava-se assim. A magistrada saía do carro e ia à mala buscar vários utensílios de “trabalho”: um chicote, umas correntes e um Código Penal. Depois fazia sinal ao solícito arrumador-funcionário para se aproximar. Sem aviso, ordenava-lhe que se pusesse de joelhos e acorrentava-o. Em seguida, abria o volumoso… Código. Com ele numa mão e o chicote na outra, lia ao desgraçado algumas cominações relativas a crimes de perigo comum criteriosamente seleccionados. Para evitar que o pobre sucumbisse de prazer, prosseguia a demonstração, fustigando a vítima repetidamente com o chicote. Neste ponto, podia até lembrar-lhe os seus deveres de funcionário em cada chicotada, misturando pedidos de fotocópias com processos confiados, horas extra com aberturas de conclusões. Quanto se cansou das vergastadas, pediu ao funcionário para lhe lamber… as botas. Precisamente. Depois, mandou-o deitar de barriga e colocou-lhe um pé, devidamente calçado como sabemos, em cima das costas, enquanto fazia um telefonema. O funcionário ainda implorou que o deixasse fazer de cachorro, dando-lhe uns pontapezinhos nas nádegas e no dorso, mas a sra. dra. recusou energicamente. “Vai trabalhar malandro! Pró ano há mais!” E pronto, assim se passou um belo pedaço de tarde. B conseguiu enfim evadir-se do fastidioso e bocejante processo.

2. Deixou-nos há pouco o poeta sueco Tomas Transtromer, o autor de “Um céu por Acabar”. Desde 1990, vivia retirado numa ilha sueca, após ter sofrido um AVC. “Uma voz diferente”, disse dele Alexandre Pastor, no prefácio de “50 Poemas” (Relógio d’Agua), que igualmente traduziu. E foi-o efectivamente. Para mim, descoberto há somente dois anos, tornou-se a última grande revelação poética. Não por acaso, vários poemas seus já aqui partilhei. Na sessão pública realizada no último Dia da Poesia foi precisamente dele um dos poemas que elegi para aí ler. Obrigado, TT.

3. Não deve haver parcimónia na dor. Nem hesitações. Aos bochechos, é coisa de fracos. Um passo à frente é fuga desesperada. Um passo atrás é desperdício. A dor aconselha. Abre as portas que nunca ousamos franquear. Cobre de neve os rastos da dúvida. Afia as facas para a hora solar. Empurra-nos para os outros, abraçando-nos. Obriga a tropeçar na corda que julgáramos estendida à nossa frente, como uma passadeira. Assiste, com desvelo, a um novo parto: o nosso.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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