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Num artigo de opinião publicado há uma semana no “Le Point” e no “Die Welt”, o ex-presidente francês Sarkozy defende uma «grande zona económica franco-alemã no coração da zona euro» que lidere o bloco da moeda única. Acrescentando que «cabe à Alemanha e França assumir grande parte da responsabilidade da governação económica da zona euro», e «a realidade é que não há apenas uma Europa, mas duas», que deveriam desenvolver-se «em diferentes direcções». Estas teses circulam há muito nos corredores de Bruxelas, dos fóruns e dos directórios políticos. Não são para sorrir e passar à frente. Pelo contrário, mexem no centro do modelo de construção europeia. E são uma resposta consentânea com o alinhamento geo-político europeu, definido em dois momentos precisos:

a) Entre 1946 e 1948. Na altura, toda a gente percebeu – mesmo os soviéticos, atarefados em amarrar na sua órbita as nações que haviam “libertado” e em criar uma narrativa épica que justificasse o desmantelamento em seu benefício das estruturas produtivas no que viria a ser a RDA – que não haveria solução para a Europa, sem estar resolvida a questão alemã. Os franceses – atarefados em julgar e segregar cerca de meio milhão de “colaboracionistas”, metendo tudo no mesmo saco, ou a erguer-se do trauma de 1940, em que a sua Grande Armée foi desfeita em seis semanas pelos panzers da Wehrmacht, pondo-se agora em bicos dos pés para aparecerem na fotografia ao lado dos verdadeiros vencedores – foram os que avançaram primeiro. E não estiveram com cerimónias: exigiram aos seus vizinhos chorudas indemnizações de guerra, confisco de maquinaria e outras estruturas produtivas, trabalho “pro bono” de operários alemães em fábricas francesas, ocupação militar do Ruhr, imposição de quotas de produção à economia alemã. Ou seja, uma reedição dos acordos de Versalhes, em 1919, que infligiram à Alemanha a maior humilhação da sua história e precipitaram as pulsões nacionalistas e o III Reich, com as consequências que se conhecem. Demonstrando assim um tacto político digno de nota. Obviamente, os anglo-americanos, mais pragmáticos, viram logo onde levariam as exigências francesas. E, apesar da subdivisão administrativa da Alemanha por zonas de ocupação, avançaram com um plano que passava, no imediato, pela democratização, reconstrução de padrões cívicos e instituições representativas, desnazificação, descartelização e reconstrução das infra-estruturas de produção e transportes. O objectivo era assim, em vez de punir economicamente a Alemanha, amarrá-la a uma nova Europa política e integra-la no mercado europeu e mundial. O plano Marshall veio logo a seguir. Consistiu, grosso modo, na subvenção americana da economia da Europa ocidental e central, com a injecção de cerca de 200 biliões de dólares, bens de consumo e equipamentos, que impulsionou decisivamente a economia de países depauperados pela guerra, com grande parte das vias de comunicação (pontes, estradas, caminhos de ferro) destruídas, sem acesso a matérias-primas, sem capitais, muitas cidades em ruínas, milhares de pessoas sem casa, com fome, deslocalizadas, mutiladas, sem esperança. Porventura, um dos maiores acontecimentos da história da Europa. E que abriu caminho, nomeadamente, à (re)industrialização em França, graças aos planos de fomento criados e conduzidos por um senhor chamado Jean Monnet. Mesmo assim, no desenho saído da guerra, a França perdeu o seu estatuto de grande potência, remetendo-se ao que é hoje: uma potência económica e militar de segundo plano e com alguma capacidade de intervenção em África. Mas aprendeu depressa a lição, como se verá a seguir.

b) Tratado de Roma, em 1957. No ano anterior, fora delineada uma Europa de inspiração francesa, por falta de comparência da Grâ-Bretanha. Ehrard, o ministro dos negócios estrangeiros da RFA, desconfiava, com acerto, da pesada máquina regulamentadora que se seguiria aos relatórios de Spaak, durante as reuniões preparatórias de onde sairia o Tratado. E com mais razão desconfiava das intenções dos franceses em “empurrarem” para a Europa a pesada subsidiação e protecção à sua agricultura, no que viria a ser a tristemente célebre PAC. A sua ideia, se Anthony Eden e Harold Macmillan, PM britânicos, tivessem cooperado, seria uma união europeia de comércio livre, de inspiração anglo-alemã, à semelhança do que viria a ser a EFTA, constituída em 1959. Mas a História não se faz com “ses”. A teimosia de De Gaulle, com os seus dois vetos à entrada dos ingleses na CEE, em 1963 e 1967, moldou o arquétipo da construção europeia até à reunificação alemã. Ou seja, um condomínio de luxo, financiado pela Alemanha, e com liderança política da França. Esse modelo, também chamado eufemisticamente eixo franco-alemão, iniciou o colapso nos anos 90 e teve o seu epílogo no Tratado de Lisboa (o do “porreiro pá”, lembram-se?), com passagem pela derrocada do Leste e reunificação germânica. A Alemanha viu aí a sua grande oportunidade de liderança, “expandir-se” para Leste (vendo bem, a “sua” ostland, a quem nunca disse adeus), humilhar os países do Sul e a Inglaterra, mantendo um casamento de conveniência com a França. Efectivamente, se já era o motor económico, a Alemanha passou a deter a iniciativa política. E a história de humilhações da França, desde 1871, ainda não acabou. Que faz agora o papel do marido cornudo, por via do sr. Sarkozy.

Por: António Godinho Gil

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