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Political Spotting

Chegou o momento em que o direito de votar deixou de parecer uma vantagem. Um cidadão vota e as coisas não mudam para melhor. Vota noutro candidato e não mudam também, ou então pioram. Regressa ao primeiro e a curva descendente não inflecte para cima. Vota em branco, ou vota nulo, e é o mesmo. É o momento de perceber que o seu papel no palco eleitoral é irrelevante. Esse sentimento agrava-se quando olha de perto para os verdadeiros protagonistas e estuda os seus percursos e biografias. Se esse cidadão for empresário pergunta-se a si próprio coisas como “eu quereria essas pessoas a gerir a minha empresa?”, ou então, se for trabalhador por conta de outrem, pode legitimamente interrogar-se sobre a viabilidade de uma empresa que seja gerida como estão a ser geridas as nossas câmaras municipais e perguntar-se-á: “durante quanto tempo teria eu garantido o meu emprego?”.

Fica então em casa e passa a assistir ao processo eleitoral de fora, como mero espectador. Ouve as propostas, aprecia as fotografias dos candidatos, analisa os respectivos currículos, toma nota das promessas e propostas. Tudo de forma desapaixonada, fleumática, indiferente. Sabe, já o vimos, que seja qual for o resultado das eleições nada de significativo irá mudar na sua vida. Regista então números e factos, para si perfeitamente anódinos, num livrinho de capas pretas, por exemplo num Moleskine de tamanho médio. Escreverá coisas como “em 4 de Outubro, pelas 14:00, o candidato A prometeu uma torneira nova para o fontanário do largo da Igreja”; ou então “em 4 de Outubro, pelas 20:00, o Candidato B prometeu três torneiras novas para o fontanário do largo da Igreja”. O observador registará apenas os factos, sem revelar qualquer tipo de emoção ou simpatia. Nem sequer salientará que o candidato B leva uma vantagem de duas torneiras sobre o candidato A, ou que essas torneiras são supérfluas.

Terá o mesmo procedimento em relação aos candidatos. Poderá elaborar uma estatística sobre o número de candidatos às próximas eleições que sejam ao mesmo tempo arguidos em processos criminais, destacando, fria e desapaixonadamente, aqueles que sejam arguidos por actos praticados no exercício das funções a que agora se candidatam. Poderá fazer extrapolações dos números conhecidos para os desconhecidos, mas prováveis, atendendo a que a vigência parcial do segredo de justiça faz com que sejam desconhecidos da comunicação social muitos mais casos do que agora ocupam as primeiras páginas dos jornais. Mas fá-lo-á com o espírito frio de um cientista que observa macacos rhesus durante uma experiência laboratorial: não emitirá juízos de valor, não lançará opróbrios, não absolverá nem condenará os arguidos no seu espírito. Quanto muito, aplicará ao número de arguidos acusados ou pronunciados as estatísticas do Ministério da Justiça para a população em geral para concluir, numa perspectiva de pura e fria lógica, que mais de metade dos ora arguidos e candidatos a lugares autárquicos são efectivamente culpados.

Poderá, por uma questão de rigor, elaborar o deve e haver das promessas eleitorais face às verbas disponíveis segundo o último orçamento, adicionar o saldo ao endividamento actual da autarquia que seja objecto do seu estudo e dividir o resultado pelo número de anos necessários ao pagamento da dívida resultante e respectivos juros, contando com a circunstância de, entretanto, haver salários e outros encargos a pagar. Se tudo correr bem, vai encontrar o exacto momento possível de cumprimento da promessa em questão. Mas não revelará os seus resultados, que é um mero observador, um cientista, e um cientista sabe que não pode interferir com o objecto que estuda.

Por: António Ferreira

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