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“Portugal de Relance”, Maria Rattazzi, Antígona, 1997, actualização do texto, introdução e notas de José M. Justo. A 1ª edição portuguesa, facsimilada, está disponível em http://bit.ly/KKOx3y

Maria Rattazzi, nascida Maria Letízia Studolmire Wyse, viveu entre 1831 e 1902. Era sobrinha-neta de Napoleão Bonaparte e nome sonante nos salões parisienses. Esteve em Portugal em 1876 e 1879. Tendo na altura sido recebida pelas mais altas instâncias. Frequentou os círculos aristocráticos e da alta finança, bem como os meios artísticos e literários da capital. Ou seja, a elite possível do tempo. Esses contactos, aliados a um espírito perspicaz, curioso e sem medo da crítica, incluindo a mais mordaz, conduziram-na ao projecto de retratar o país da Regeneração e do Fontismo, de “Os Maias” e do proverbial atraso, próprio de uma periferia ensolarada, ingovernável, indolente e placidamente pacóvia.

Desse desígnio saiu, em edição francesa, “Le Portugal à vol d’oiseau” (1879). Dois anos depois, surgiu (com traducção portugueza auctorisada pela auctora, embora anónima), a edição portuguesa, com o título actual. É certo que a carreira literária de Maria Rattazzi é pouco mais do que nula. Mas a sua memória ficou indissoluvelmente ligada à publicação desta obra e à polémica que originou. Pois que, logo após a 1ª edição, a que se seguiram diversas outras, as reacções indignadas não se fizeram esperar. Para se perceber melhor a sua dimensão, leia-se um excelente artigo de João Céu e Silva, no DN, com o título “Uma fogueira de vaidades para queimar Maria Rattazzi”, disponível em http://bit.ly/1bk8rJB.

A indignação incluiu uma resposta verrinosa do inconformado Camilo, com o título “A senhora Rattazzi”. Não sendo próprio de um cavalheiro do séc. XIX bater-se num duelo ou desferir umas bengaladas reparadoras numa dama, o libelo jocoso era o pedido de satisfações possível. E onde não falta mesmo o inevitável jogo semântico com os repugnantes roedores. De fora ficaram as mais elementares regras da cortesia. Um exemplo: «Mulher escriptora, por via de regra pouco exceptuada, é um homem por dentro. O coração, que devia ser urna de suavissimas lagrimas, faz-se-lhe botija de tinta; e as dôces penas da alma metallisam-se-lhe aguçadas em pennas de aço. O fuso de Lucrecia e da rainha Bertha desfez-se em canetas. Em vez de tecerem o seu bragal, urdem intrigas. (…) e, quando não suspiram, bufam coleras represadas, dizem que têm idéias, que se querem emancipar, muito aziumadas, naturalistas, com um grande ar de pimponas que entraram no segredo dos processos; e, se não batem nos homens não é porque elles não o mereçam. (…) O Dom Francisco Manoel de Mello tinha razão; Mulheres doutoras, authoras e compositoras dava-as ao diabo. (…) Não ha feminilidades que se respeitem desde que a mulher se masculinisa, e, como escriptora de virago, salta as fronteiras do decoro, sofraldando as espumas das rendas até à altura da liga azul-ferrête».

A violência misógina da prosa deveu-se à referência, pouco abonatória, que a ilustre parisiense lhe dedicou na Carta Décima Oitava, ao traçar um retrato resumido do panorama literário nacional. Rattazzi refere o autor de “Amor de Perdição” como alguém que «parece condenado aos trabalhos forçados da literatura portuguesa. Escreve, escreve, escreve incessantemente. (…) A quantidade, segundo parece, supre por vezes a qualidade». E mais à frente: «Todos os romances do solitário de S. Miguel de Seide contém infalivelmente um tipo de brasileiro, uma rapariga que se recolhe a um convento, um fidalgo de província e um romântico apaixonado e transparente». A estocada final vem na nota de rodapé da edição portuguesa: «Camilo Castelo Branco declarou publicamente que não figura nenhum brasileiro em dois dos seus romances. Registemos-lhe a declaração».

A observação da autora, mesmo que porventura pertinente, vale o que vale. Até porque não se pode avaliar a importância de uma obra e o mérito de um escritor condenando-os numa amostragem estatística. As grandes obsessões são o toque de Midas que fazem os grandes escritores. Nestes, a liberdade é tão grande que fazem dos seus personagens seres em trânsito de livro para livro. Não preenchem uma galeria de tipos, como no teatro vicentino, mas vagamundos que recriam o compasso do tempo e do espaço. E também porque Camilo é, para mim, o grande escritor português do séc. XIX. Escritor, e não romancista, pois essa glória pertence obviamente a outro.

Mas a desvalorização de Camilo revela ainda outra coisa. Ofuscada pelos salões e vacuidade da capital (apenas com breves incursões ao Porto, Coimbra e Caldas da Rainha), arrogando-se embaixadora das luzes e da “supremacia” cultural francesa, Rattazzi não teve tempo para (ou não soube) perceber o país profundo que tinha à sua frente. Uma realidade que não é só geográfica e social, mas sobretudo espiritual. Uma realidade que, longe de ser obscura, no entanto requer tempo. E despojamento. E agilidade. Ler algumas obras de Camilo teria sido, para ela, uma excelente porta de entrada no país que não quis compreender, ou mesmo conhecer.

Rattazzi percorreu o Portugal desse tempo com a curiosidade do touriste e a impertinência do viajante. Daí resultaram 25 Cartas, que em rigor são apontamentos de viagem e crónicas de costumes. Onde captou, de forma transversal, o essencial do país. Da geografia aos costumes, dos vícios à política, do património aos espectáculos, da gastronomia aos pecadilhos, da história aos costumes. Nem sempre o fez com rigor e de boa-fé. Mas a coragem em apontar o dedo desculpa os erros de apreciação. A lucidez cosmopolita faz perdoar o exagero e a superficialidade. Um documento singular e imprescindível.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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