É com sentido prazer, mas receio de falta de alguma competência, que inicio hoje aquilo que espero que venha a tornar-se um convívio habitual com os leitores de O INTERIOR, ao qual desde já agradeço a distinção que me confere de querer-me como cronista.
Mais habituado a ler do que a escrever, deixarei no entanto discorrer aqui sentimentos genuínos do habitual quotidiano das coisas da Guarda, tentarei partilhar convosco o meu olhar sobre a vida escrevendo pequenas crónicas e, como todas as crónicas são por definição pequenos diálogos com os leitores a quem se destinam, na tentativa de mostrar a visão de quem escreve, assim faremos. Combinado?
Tenho para mim, porque é esse o objetivo com que escrevo, que o desejo de quem escreve não é criar correntes de pensamentos iguais, o desejo de quem escreve é fomentar interpretações diferentes, opiniões concorrentes, enfim… criar processos humanos evolutivos e melhorar a nossa relação com o mundo e uns com os outros. Falemos hoje da memória das coisas.
A memória (capacidade mental de reter, recuperar, armazenar e evocar informações) é a essência vital que faz do homem um ser semi divino. Não fora a mortalidade biológica a que estamos sujeitos e não encontraria argumentos para não classificar o homem como um Deus. Uma entidade divina adepta do bem ou adepta do mal, nesta dicotomia em que resumimos a vida e o que nela acontece. De qualquer forma, um Deus!
Não se verificando essa condição de imortalidade essencial à divindade, surge a memória como fator de imortalização humana, não biológica, mas, talvez, mais importante que isso, referencial, metafísica e evolutiva. Das antíteses da memória histórica de Jesus Cristo a Herodes Antipas, de Genghis Khan a Mahatma Gandhi, ou de Adolf Hitler a Florence Nightingale, herdámos este conceito de bem e mal, mas fundamentalmente retivemos na memória referenciais de conduta que abominamos ou admiramos. Em potência cada homem situa-se algures entre uns e outros exemplos, arriscando-se a eternizar-se pela memória quanto mais se aproxima dos extremos.
Exige, pois, uma reflexão individual esta “eternização” a que cada um de nós está sujeito. O que dirão de nós os filhos dos nossos filhos? Que energia positiva ou negativa deixamos como herança aos vindouros?
Uma coisa é certa, biologicamente teremos um fim, tentamos enganar a natureza transmitindo geneticamente algumas características aos descendentes, sim, uma parte do nosso ADN resistirá durante duas ou três gerações à nossa extinção biológica, mas até essas características genéticas serão apagadas ou adulteradas pelo ambiente. Por isso reafirmo que a memória é provavelmente a essência vital, a “alma” dos homens.
Os gigantes também morrem!
Este pequeno texto pretende ser uma homenagem àqueles de nós que com a sua conduta, capacidade de relação, atenção ao próximo e dedicação às causas humanas conseguirão fazer prevalecer a sua memória e assim assumir-se como fatores de evolução da humanidade.
Há dias, num dos passeios ao “nosso” hospital observei a morte anunciada de uma das sequoias seculares, património classificado pelo ICNF – Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ver: Ref.ª KNJ3/043 em:http://www.icnf.pt/portal/florestas/aip/aip-monumentais-pt).
Um gigante morreu. Partiu-se pelo meio a mais de 20 metros de altura perante uma força superior à sua depois de mais de um século de existência. A força de todos os homens da Guarda dificilmente a quebrariam assim, e no entanto… morreu! Milhares de pássaros nela se criaram e viveram, milhares de horas de sombra proporcionou aos doentes do Sanatório, visitas e casais da cidade que passearam no nosso “bosque” único nas suas sequoias, das mais altas da Europa.
Fico a pensar. Vem-me à memória a fragilidade do homem. Vem-me à memória o homem que deu nome ao nosso hospital, Sousa Martins, iminente médico e farmacêutico que alguns julgam santo e outros, como eu, apenas o julgam sábio. Sábio por ter feito perdurar a sua memória. Também ele quebrou, novo ainda, perante um diagnóstico: tuberculose e lesão cardíaca! Rezam dele as memórias, que terá sussurrado para um colega:
– “Um médico ameaçado de morte por duas doenças, ambas fatais, deve eliminar-se por si mesmo”.
É o que ele faz a 18 de agosto de 1897, injeta-se com uma overdose de morfina. 54 anos de vida biológica!!!
Deste homem, cuja memória perdura, relembro o que dizia um mestre médico e meu professor na Escola de Enfermagem. Sousa Martins terá dito: «Quando entrardes de noite num hospital e ouvirdes algum doente gemer, aproximai-vos do seu leito, vede o que precisa o pobre enfermo e se não tiverdes mais nada para lhe dar, dai-lhe um sorriso».
É por aquilo que fez e disse em vida que penso que ele não é santo. Foi santo enquanto viveu! Agora utilizemos a memória do que nos deixou. Podemos nós viver de tal forma que quando partirmos ao meio, voluntariamente como Sousa Martins, ou por força da natureza como a sequoia, alguém sinta a nossa falta?
Esse é o nosso desafio de vida!
Por: Júlio Salvador
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