Para conhecer é preciso partir. Para partir é preciso desancorar. “Moby Dick” força-nos a esse desapego, pois o leitor é deixado à deriva e ai de quem o venha salvar, pois quando se ingressa numa viagem desta natureza parte da nossa existência vai morar num lugar que fica algures entre a cauda de uma baleia e a mais branca das Limas. Mas como o cachalote tem uma vida por escrever, Melville relata-nos esta travessia que tem tanto de América como de nós próprios.
Logo no início percebemos que a história vai ser narrada por Ismael e é com Ismael que tudo parece mais certo, pois se a Terra é o elemento das raízes e da estabilidade, a Água é movimento e tempo para ser triste. Abandonado à sua própria sorte, este órfão começa a sua história com a célebre frase «Call me Ishmael». Até aqui nada de novo, mas também nada de velho. Quem nos diz, afinal, que ele se chama mesmo Ismael?
Não tenho respostas a esta questão e a parte mais interessante é que ninguém tem. Melville apenas sugerira que a sua morada haveria de ser para sempre esta não morada, e a América o continente solitário que vai à pesca, ignorando que também ele pode ser pescado. Por isso é preciso estar atento e nunca tirar os olhos do posto de vigia. A história começa num dezembro, eu navego no Pequod há três meses, mas esta síntese já é por si só um erro. Ainda assim, é preciso respirar para errar mais um pouco, pois eu não conheço a grandeza do cachalote, nem sou portadora dos seus pulmões.
O relato parece simples, mas nada na vida deste cetáceo se adivinha simples. Em linhas gerais, a história fala-nos de um navio que parte de Nantucket rumo às águas do Oceano Pacífico, carregando consigo uma obstinada missão: assassinar Moby Dick – a monstruosa baleia branca –, que fora responsável por ceifar a perna do capitão Ahab. Este é o propósito do monomaníaco Ahab, mas Melville quer-nos mostrar muito mais do que essa face violenta, quase demoníaca, da vingança.
Há nele uma vontade de tudo esmiuçar e quanto mais mergulhamos nesse azul sem fundo, mais passados temos de enfrentar: «Que era a América em 1492 senão um peixe perdido, onde Colombo cravou o estandarte espanhol como marca para os seus reais senhor e senhora? Que era a Polónia para o czar? A Grécia para os turcos? A Índia para a Inglaterra? Que será, por fim, o México para os Estados Unidos? Todos peixes perdidos. Que são os direitos do Homem e as liberdades do mundo senão peixes perdidos?».
Ninguém fica alheio e Ismael como bom americano que é – branco, macho e cristão – quer descobrir a sua herança selvagem. Só que aquilo que ao início aparentava ser uma história de amizade entre o mundo civilizado (Ismael) e o mundo pagão (Queequeg) rapidamente se mistura com a chegada de três oficiais: Starbuck (o homem sensato de Nantucket), Stubb (a invulnerável jovialidade de Cape Cod) e Flask (o pequenino brincalhão que troça das baleias); e mais dois arpoadores que acompanham Queequeg neste ofício: Tashtego (pele-vermelha de Gay Head, escudeiro de Stubb) e Daggoo (negro e gigante africano, escudeiro de Flask). A partir daqui tudo se desprende para nos incluir numa caçada demasiado longínqua, demasiado só e demasiado masculina. Não possuo os arpões e as orações destes homens, mas sei que não vale a pena fechar as escotilhas. Todos somos destroços.
Melanie Alves
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
**Pode visitar: www.aosomdapele.wordpress.com